A maltratada língua portuguesa em Macau

A edição de hoje do jornal "Ponto Final" publica dois artigos (e um outro que levanta a questão da falta de recursos humanos na área da interpretação/tradução) em que é referida a língua portuguesa e em que são apontados os maus-tratos de que é vítima em Macau.
Hélder Beja foi à procura das "pérolas"(sic) que retratam o "exotismo"(sic) que é a utilização da língua portuguesa na RAEM.
Lembro-me bem, e haverá muito mais pessoas que se lembram também, que estas "pérolas" deram origem a um livro, supostamente bem humorado e, também ele, exótico.
Um livro patrocinado pela Administração ainda para mais.
Eventualmente é um sintoma de mau feitio da minha parte, mas, não só não achei piada nenhuma à iniciativa, como se me afigurou de um mau gosto atroz e absolutamente deprimente.
Não me recordo exactamente qual o ano em que foi publicada a "obra", sei apenas que foi antes de Dezembro de 1999, mas a minha opinião não mudou nem um bocadinho.
Continuo a não achar piada nenhuma a estes atentados à língua portuguesa e continuo a pensar que não há necessidade nenhuma de teimosamente insistir na utilização da língua portuguesa no âmbito comercial.
A Lei Básica reconhece o estatuto de língua oficial ao português.
O Código do Procedimento Administrativo insere no Capítulo II, entre os prinícipos gerais, o princípio de utilização das línguas oficiais, que determina que "as línguas oficais de Macau serão utlizadas pelos órgãos da Administração Pública, no exercício da sua actividade".
E é aqui que reside a questão essencial para se perceber qual o âmbito de utilização da língua portuguesa.
Se bem interpreto as duas normas, a língua portuguesa terá de ser utilizada no âmbito oficial, em documentos emitidos pelas entidades da Administração, na sua actividade diária.
Não na actividade comercial.
E aí as "pérolas" deixavam de existir.
Nem se argumente que assim é muito mais difícil à fatia da população que não domina a língua chinesa reconhecer o ramo de actividade de alguns estabelecimentos comerciais.
Todos sabemos que tal não corresponde à verdade.
Só por teimosia se pode insistir na obrigatoriedade da utilização do português na actividade comercial, ainda mais para depois essa utilização ser motivo de chacota.
Alan Baxter, o cidadão de origem australiana que dirige o Departamento de Português da Universidade de Macau, ainda nas páginas do "Ponto Final", diz-se "irritado com aqueles anúncios electrónicos com avisos" e que "Em algumas das placas a linguagem que aparece é realmente assustadora".
Julgo que Alan Baxter, tal como eu, também não acha piada nenhuma a estas situações, a estes "exotismos", a estas "especificidades", a tal palavra maldita que me avisaram que não deveria utilizar em Macau logo na primeira semana que aqui cheguei.
Alan Baxter defende então a criação de um órgão no seio da Administração que seja responsável pelo uso linguístico no âmbito público, referindo que "(...) fica-se com a impressão de que é a China, são os dirigentes da China continental que reconhecem a importância da língua portuguesa em Macau e a função que pode desempenhar".
Mais, o académico demonstra alguma desilusão quando declara que "o povo local não parece ligar tanto".
Inteiramente de acordo com os desabafos de Alan Baxter.
A língua portuguesa sobrevive em Macau pela atenção que as autoridades centrais lhe dedicam.
Também pela necessidade que ainda se sente no âmbito jurídico, por muitas cócegas que esse facto ainda vá provocando em gente com grandes responsabilidades na estrutura da Administração.
Já a criação do tal órgão no seio da Administração, que defende Alan Baxter, me suscita sérias reservas.
O que é que se pretende? Um "polícia da língua"? Com que âmbito de actuação? Com que poderes?
Se se pretende criar um órgão que reveja todos os anúncios oficiais, apesar de ter algumas dúvidas acerca de onde existirão os profissionais que iriam integrar esse órgão (viriam de Pequim onde a formação linguística é excelente?), e de como se iria articular a competência desse órgão com a competência da restante estrutura da Administração, ainda concedo que será uma proposta a estudar, como agora está tão em voga dizer-se.
Se é um super-polícia, que iria verificar toda a publicidade comercial, todas as tabuletazinhas de estabelecimentos comerciais, parece-me algo perfeitamente inusitado.
Insisto que não é esse o meu entendimento do estatuto de língua oficial que é atribuído à língua portuguesa.
Assim como também não é na utilização da língua portuguesa que gosto de pérolas e exotismos.





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