Os mitras, os boys e os betos (Maria Filomena Mónica)

Alguns têm pais que fizeram sacrifícios para os mandar para a universidade, outros provêm de famílias das classes médias com relações políticas, outros ainda nasceram nos berços de oiro há muito na posse dos antepassados. Para usar a terminologia moderna, são os mitras, os boys e os betos. Em comum, apenas têm a idade, entre 20 e 35 anos. Dentro de cada grupo, há de tudo. Uns são inteligentes, outros burros; uns são trabalhadores, outros preguiçosos; uns são cultos, outros ignorantes; uns são de esquerda, outros de direita; uns são rapazes, outros raparigas; uns são ambiciosos, outros resignados; uns são activos, outros passivos. Mas todos, em maior ou menor grau, olham o futuro com apreensão.



Portugal mudou muito e muito rapidamente. Numas coisas para melhor, noutras para pior. Com o 25 de Abril, deixámos de estar envolvidos numa guerra colonial, ganhámos as liberdades fundamentais e entrámos numa Europa que dantes ficava para além dos Pirenéus. Mas falhámos em muitas áreas. Continuamos a ser um país pobre, o que explica que um emprego à vida seja a ambição suprema. A meritocracia ficou para trás, o que não admira, pois quem é miserável não costuma valorizar a concorrência.



Referindo-me ao mundo que conheço melhor, o universitário, eis como as coisas se passam. Apesar de ocasionalmente sujeitos a uns concursos mal engendrados, os docentes e os investigadores do "quadro" não só têm um posto de trabalho vitalício como ganham, os bons e os maus, o mesmo salário. Vendo este exemplo, os jovens que frequentaram a universidade consideraram tal situação a ideal. Mas não o é.



Tenho pena que a minha geração - a que nasceu na década de 1940 - não tenha valorizado o trabalho, o esforço e a competência. O resultado é o que se vê: por mais inútil, ignorante e preguiçoso que um indivíduo seja, é quase impossível despedi-lo. Como se isto não fosse suficientemente negativo, à medida que os dois grandes partidos se alternavam no poder, o número de lugares para os boys foi crescendo. Até ao dia em que o Estado descobriu que não tinha dinheiro para ninguém.



Há anos, há décadas, que venho a alertar para o facto de a correlação entre educação e desenvolvimento não ser uma relação causal. É mentira que mais ensino conduza necessariamente a uma economia mais dinâmica. Quem duvide disto, deve ler a obra que, em 2002, Alison Wolf publicou, Does Education Matter?. O consenso oficial é exactamente o oposto, ou seja, para os nossos políticos, quanto mais "educação", melhor. Não admira que as expectativas dos pais tenham crescido. Até ao dia em que, entre o espanto e a indignação, viram que, apesar de terem um diploma, os seus filhos não arranjavam trabalho. No dia 5 deste mês, The Economist publicou um gráfico no qual Portugal vem à cabeça. A coisa era tão extraordinária que me debrucei sobre ele gulosamente. Eis o que descobri: entre 2000 e 2007, relativamente ao grupo etário correspondente, Portugal teve a percentagem mais elevada de estudantes pós-graduados do mundo. Durante a última década, o número de doutorandos quadruplicou, ultrapassando países como a Suécia, a Inglaterra e os EUA. Parece exaltante, mas não é.



Através da Fundação da Ciência e Tecnologia, a União Europeia tem vindo estimular uma política expansionista do ensino pós-graduado, o que a faz distribuir bolsas de estudo a gente que, à partida, qualquer docente com dois dedos de testa seria capaz de prever que nunca acabará o doutoramento.



É verdade que filhos de sapateiros deixaram de ser sapateiros e as filhas das criadas de servir de ser empregadas domésticas, uma realidade positiva. Mas a qualidade da educação não deveria ter sido, como foi, sacrificada. Os promotores da manifestação de ontem são todos licenciados em Relações Internacionais. Isto habilita-os a quê? Alguém se deu ao trabalho de olhar o conteúdo destes cursos? Os docentes que os regem sabem do que falam? Duvido.



Por muito que custe ao dr. Mário Soares, o voto só é uma arma se um cidadão tiver a possibilidade de escolher o "seu" deputado. Se o voto contribuir apenas para legitimar os indivíduos seleccionados pelos marechais dos partidos, o regime fica em maus lençóis. Os políticos deveriam ter previsto que, um dia, a "geração sem remuneração" sairia à rua. O futuro destes jovens não é agradável. Nem todos sofrerão da mesma maneira, mas o que aí vem é terrível. Enquanto os betos têm a família por detrás e os boys as alavancas dos partidos, os mitras acabarão em empregos mal remunerados e no desemprego. Em Portugal , a mobilidade social é um mito .

Comentários

  1. E vamos por partes como este post.
    Como não havia possibilidades monetárias na altura em que deveria seguir o ensino superior, só quase 15 anos depois é que o frequentei, sendo eu a "sacrificada" no seu pagamento. E como já ultrapassei os 35, não sou mitra, "boy"-girl nem beto.

    Com o 25 de Abril chegou a liberdade e pouco mais. Estamos mais preocupados em aniquilar a concorrência do que propriamente em valorizá-la.

    Quando cheguei ao ensino superior e deparei com uma docente de inglês técnico, que nem inglês sabia escrever, questionei-me várias vezes se não seria melhor eu mesma dar aquelas aulas aos colegas acabados de sair do ensino secundários, que não davam pelos erros ortográficos da docente.

    Os superiores não querem valorizar o trabalho, o esforço a competência. Preferem simplesmente catalogar o trabalhador e tentar aniquilá-lo ao mínimo deslize, do que aproveitar o excelente funcionário. Os boys, esses sim o "orgulho" do patronato.

    É preocupante termos excelentes alunos no desemprego, muitos deles acabam por abandonar Portugal e vão dar contributo para a economia de outro país.Quem "manda" ainda não reparou que certos cursos deveriam estar encerrados temporariamente para fazer o escoamento do que há no mercado presentemente?!?!

    Estimular o doutoramento para sermos um país de doutores "sapateiros"?

    No entanto temos que ver que há ainda muita gente sem condições monetárias, que são excelentes "crânios". E porque não investir em quem é capaz?
    Quanto ao conteúdo dos cursos, deveria haver uma grande reformulação dos conteúdos, dirigidos a áreas específicas. Para que serve num curso de línguas, termos informática de programação, se na hora de escolher até preferimos um informático?!?

    Continua e vai continuar por muitos anos, as "cunhas", os "compadrios". Mais vale ter o filho do sr. Z que é um bronco, do que a filha da costureira, que até acabou o curso com média de 17.

    Eh pá! Hoje escrevi, escrevi. E muito mais haveria por dizer...

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  2. "Como não havia possibilidades monetárias na altura em que deveria seguir o ensino superior, só quase 15 anos depois é que o frequentei, sendo eu a "sacrificada" no seu pagamento".

    Carlota,
    Há momentos em que os comentários são muito superiores ao post.
    Este será um deles.
    Nem imagina o que gostei de ler o seu comentário.
    A sua coragem, perseverança e força de vontade, fazem-me lembrar o meu pai.
    Que concluiu a licenciatura aos 72 anos.
    Porque só então teve possibilidades de o fazer.
    E também eu conheço casos de pessoas, alguns que eram meus colegas de curso, excelentes alunos, que tiveram que abandonar os estudos porque não tinham possibilidades económicas de os prosseguir.
    É revoltante.
    De tal forma que, por causa disso, praticamente cortei relações com uma pessoa que conhecia desde a infância e que, a este propósito, e porque os filhos eram incapazes, teve o azar de me dizer que "só deveria ter acesso às Universidaes quem tivesse dinheiro para isso" (sic).
    Já passaram muitos anos, mas nunca mais esqueci esta frase.

    "Mais vale ter o filho do sr. Z que é um bronco, do que a filha da costureira, que até acabou o curso com média de 17."

    Infelizmente, ainda é assim.
    Mas sabe uma coisa?
    Eu admiro, muito!!, a filha da costureira.
    E o brnco, por muito poder ou dinheiro que tenha, vai ser sempre um bronco.
    Adorei o seu comentário!!

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