Queridos amigos, tanto
que eu queria não vos desiludir, cumprindo a tempo e horas o que vos prometi com
solenidade, mas infelizmente irei continuar em falta, e desta vez a culpa traz
dupla assinatura pois não é só minha, ainda que não conheça a quem imputá-la.
Confuso? Compreenderão se vos disser que ao regressar a Lisboa encontrei a casa
assaltada.
Sim, meus amigos, a
porta estava entreaberta, como se um estranho outro dono nos esperasse, e a
fechadura não havia sido violada. Como explicar? Uma pessoa entra pela casa
adiante, com a consciência perfeita do momento, o domínio sobre os maxilares,
perfeito, e os músculos dos joelhos, intactos. O coração nem bate um pouco mais,
prossegue o seu caminho, tiquetaque, tiquetaque, relógio orgânico habituado a
muita coisa, e aí vai ele, inalterado. O coração fala consigo mesmo — Ficou o
computador? Ficou. Ficaram as fotografias? Ficaram. Ficou o frigorífico velho?
Sim. O passa-discos, também ficou? Que bom. E também ficou o televisor. E ficou
o coelhinho de chocolate que me inspirou um conto, há dois anos. E a caneta de
rosca, e as rosas de sarapilheira, e o caderno encarnado. Então uma pessoa olha
para o caos instalado, a dança dos objetos que andaram de um lado para outro,
cruzando-se no espaço, e sente uma espécie de anestesia. Não dá para pensar, só
dá para ver. Pois no rebuliço, os pechisbeques voaram para cima da cama, os
recibos das finanças foram parar nos portais, as cartas dos amigos ficaram
debaixo dos óculos velhos, alguns deles saíram das caixas, e na confusão, de
repente, a pessoa descobre que os aros estavam mais do que ultrapassados. Há
quanto tempo estariam os óculos guardados no fundo da gaveta agora vazia? Aliás,
todas as gavetas estão completamente vazias, e o chão está completamente
juncado. Onde colocar os pés? O que estará debaixo do monte das informações
bancárias, umas vinte, que parecem ter-se multiplicado por mil? E as moedas
canadianas, e os reais desprezados? Que curioso é o bater do nosso coração.
Tiquetaque, tiquetaque, sem alteração alguma.
Pois por que não? Há
revelações estranhas nesta desarrumação dos objetos. Umas velas que não
apareciam há vinte anos ocupam lugar preponderante por cima de cintos e meias.
Cuecas velhas que uma pessoa guardou só porque tinham uma ponta de renda, estão
largadas sobre o busto esverdeado do Bach. Uma almofada em forma de lagarta
cobre uma caixa de vidro de onde terá saído alguma coisa que foi parar dentro de
sapatos. Cartas, tesouras, sapatos. E de repente, a vida vem ao nosso encontro e
fala do tempo que passa, e da irrelevância dos objetos guardados, como se eles
apenas servissem para nos dar recados de que não há recados. Mas neste ponto,
meus amigos, eu faço uma pausa.
Pois será que não
haverá mesmo recados? Então o que sentirá uma pessoa que se infiltra na casa dos
outros para procurar o que não lhe pertence? Será um método de vida? Uma tática
de dever? Um exercício de frieza? Um exercício de perversidade? Um dia, o
Baptista-Bastos, na boa tradição romântica, chamou ao ladrão de “Senhor Ladrão”,
e deu-lhe uns conselhos calmos. Pois também eu, ao regressar a casa e ao sentir
que o ladrão deixou aqueles objetos que verdadeiramente mais amo no seu exato
lugar, fui assaltada por um sentimento semelhante, uma gratidão inexplicável por
esse ladrão que só queria ouro e dinheiro, precisamente o que as pessoas da
minha igualha não têm mais em casa, porque não têm em lugar nenhum. E como uma
romântica, que a seu tempo leu Os Miseráveis, comecei a pensar no
Estado.
Inveterada, imaginei que não foi
pessoa quem me assaltou a casa. Imaginei que foi o Estado quem veio pela calada
da noite, meteu a chave falsa, rodou-a, silenciosa, o Estado empurrou a porta, o
Estado pensou que havia uma fortuna nos lugares onde os cidadãos comuns costumam
esconder as fortunas, o Estado enervou-se por só encontrar clips, cotão,
recortes de jornais, morraça, e foi-se enfurecendo, foi atirando para o chão
tudo o que encontrava na frente, na esperança de que a fortuna do cidadão de
súbito saltasse do interior das páginas de um livro. Que ironia. O Estado a
procurar ouro e divisas dentro das páginas de um livro. Que ridículo. O Estado
cansou-se. O Estado ainda pensou derrubar o candeeiro, mas depois sentiu que
havia visitado um cidadão insignificante, e achou que apenas perdera o seu
tempo. O Estado sabe o que faz. O Estado abalou a procurar a sua sorte numa casa
mais rica. Não falo só no meu Estado, falo também do Estado do visitante. Quando
cheguei a este ponto, de súbito o tiquetaque desorganizou-se, os joelhos deram
de si, e felizmente que havia um Magnum Clássico no congelador. Ele permitiu,
meus amigos, que eu abrisse este computador e vos explicasse por que razão, se
acaso não me dispensarem, em face do exposto, de escrever um artigo para o vosso
site, irei precisar de um tempo liberto desta presença dúbia que ainda permanece
no interior da minha casa. De quem eu tenho pena, se for gente, por quem eu
sinto raiva, se for Estado.
Parei no tempo e olhei para o estado da Lídia e para o outro Estado que nos entra em casa e nos devassa tudo com raiva e ódio de sermos portugueses
ResponderEliminarO estado Alemão não rouba o seu povo, mas aqui como na Grécia o estado já deita a mão a tudo o que hipoteticamente parece ter valor e pior desorganiza cada vez mais e o rasto deste estado é pior que outros furacões na Costa dos Estados Unidos.../...
O texto da Lídia Jorge é excelente, Luís.
ResponderEliminarPublicado pelo Casal das Letras, tinha que o publicar aqui também.
Quem é esse tal Estado que ela tantou falou? Será Estado de Alma? ;)
ResponderEliminarVocê sabe bem que e outro, FireHead....
ResponderEliminarMuito bem, Lídia Jorge, minha irmã. A sua casa, a desta maravilhosa crónica que nos dá, são as populações do País e o próprio País. O Estado, nos seus principais agentes executivos - PR Aníbal-Maria, e Governo da tripla PP-PC-Gaspar - é o ladrão que não quer os nossos móveis, só quer a bolsa, porque sabe que bem que, se nos levar a bolsa de cada dia, leva, com ela, a nossa própria vida, sem necessidade de gastar uma única bala para no-la tirar. Mata-nos à fome. Somos todas, todos, a sua casa. A desta maravilhosa crónica que nos dá. Bendita, Lídia Jorge! Um beijo sororal.
ResponderEliminarMuito bem, Lídia Jorge, minha irmã. A sua casa, a desta maravilhosa crónica que nos dá, são as populações do País e o próprio País. O Estado, nos seus principais agentes executivos - PR Aníbal-Maria, e Governo da tripla PP-PC-Gaspar - é o ladrão que não quer os nossos móveis, só quer a bolsa, porque sabe que bem que, se nos levar a bolsa de cada dia, leva, com ela, a nossa própria vida, sem necessidade de gastar uma única bala para no-la tirar. Mata-nos à fome. Somos todas, todos, a sua casa. A desta maravilhosa crónica que nos dá. Bendita, Lídia Jorge! Um beijo sororal.
ResponderEliminarExcelente texto, Mário.
ResponderEliminarEste era dos tais que eu tinha que aqui publicar.
Os meus melhores cumprimentos e volte sempre, por favor.