No Cais do Sodré há mais do que uma praia escondida debaixo do asfalto
No Cais do Sodré há mais do que uma praia
escondida debaixo do asfalto
Enorme rampa de lançamento de barcos do séc.
XVI foi
descoberta
debaixo da Praça D.
Luís, juntamente com vestígios de estruturas de
séculos
posteriores.
A descoberta tem menos de um mês. Os
arqueólogos encontraram uma
enorme rampa de lançamento de barcos do séc.
XVI junto ao mercado da
Ribeira, em Lisboa. Feita com troncos de
madeira sobrepostos, a
estrutura ocupa 300 metros quadrados e data
de uma época em que a
cidade
sofria os efeitos de sucessivos surtos de peste e epidemias,
graças aos contactos com outras gentes
proporcionados pelos
Descobrimentos.
Para continuar a trazer de além-mar o ouro, a
pimenta e o marfim que
lhe
permitiam pagar as contas, o reino investia na construção naval,
e
a zona ribeirinha da cidade
foi designada como espaço privilegiado de
estaleiros. Os relatos da altura dão conta de
uma cidade cheia de
escravos
vindos de além-mar, mas também de mendigos fugidos do resto
do país para escapar à
fome.
Os
arqueólogos nem queriam acreditar na sua sorte quando depararam
com
a rampa enterrada no lodo
debaixo da Praça D. Luís, a seis metros de
profundidade, e muito provavelmente associada
a um estaleiro naval que
ali
deverá ter existido. "É impressionante: é muito difícil
encontrar
estruturas de
madeira em tão bom estado", explica uma das responsáveis
da escavação, Marta Macedo, da empresa de
arqueologia Era.
No Instituto Português do Património
Arquitectónico e Arqueológico o
achado também tem sido motivo de conversa,
até porque os técnicos
desta
entidade foram chamados a acompanhar os trabalhos, que estão a
ser feitos no âmbito da construção de um
parque de estacionamento
subterrâneo. A subdirectora do instituto,
Catarina de Sousa, diz que
esta e outras estruturas encontradas são,
apesar de muito
interessantes, perecíveis, pelo que a sua
conservação e musealização
na
Praça D. Luís é "praticamente inviável". Como a escavação ainda
não
terminou, os arqueólogos
acalentam a esperança de ainda serem
brindados, em níveis mais profundos, com
algum barco submerso no lodo,
como já sucedeu ali perto, tanto no Cais do
Sodré como no Largo do
Corpo
Santo e na Praça do Município. "É possível isso acontecer",
admite Catarina de
Sousa.
Musealização em
estudo
No séc.
XVI toda a zona entre o mercado da Ribeira e Santos era de
praias fluviais. Mas não era para lazer que
serviam os areais banhados
pelo Tejo. Na História de Portugal coordenada
por José Mattoso, Romero
Magalhães conta como, poucos anos após a
primeira viagem de Vasco da
Gama à India, "a zona ribeirinha da cidade é
devassada pelos
empreendimentos do monarca [D. Manuel I] e
dos grandes armadores".
Depressa surgem conflitos com a Câmara de
Lisboa, ao ponto de o rei
ter, em 1515, retirado ao município a
liberdade de dispor das áreas
ribeirinhas para outros fins que não os
relacionados com o apetrecho e
reparação das naus, descreve o mesmo autor.
São as chamadas tercenas,
locais dedicados à função naval e
representados em vários mapas da
época. Mais tarde a mesma designação passa a
abranger também o lugar
onde
se produziam e acondicionavam materiais de
artilharia.
O
espólio encontrado pelos arqueólogos inclui uma bala de canhão,
um
pequeno cachimbo, um pião,
sapatos ainda com salto - na altura os
homens também os usavam -, restos de cerâmica
e uma âncora com cerca
de
quatro metros de comprimento, além de cordame de barco. Também
há
uma casca de coco
perfeitamente conservada, vinda certamente de
paragens exóticas para as quais os
portugueses navegavam.
Um relatório preliminar dos trabalhos
arqueológicos em curso explica
como a zona da freguesia de S. Paulo se
transformou de um aglomerado
de pescadores, fora dos limites da cidade de
Lisboa, num espaço
importante
para a diáspora: "A expansão ultramarina contribuiu para
uma reestruturação do espaço urbano de
Lisboa, que se organiza desde
então a partir de um novo centro: a Ribeira".
Em redor do Paço Real
reúnem-se os edifícios administrativos. "É na
zona ocidental da
Ribeira que
a partir das doações de D. Manuel se irão instalar os
grandes mercadores e a nobreza ligada aos
altos funcionários de
Estado,
que irão auxiliar o rei (...) na expansão ultramarina e na
centralização do poder", pode ler-se no mesmo
relatório. A escavação
detectou ainda restos de outras estruturas
mais recentes. É o caso de
uma escadaria e de um paredão do Forte de S.
Paulo, um baluarte da
artilharia costeira construído no âmbito das
lutas da Restauração, no
séc.
XVII. E também do vestígios do cais da Casa da Moeda, local onde
se cunhava o metal usado nas transacções. Por
fim, foram descobertas
fornalhas da Fundição do Arsenal Real, uma
unidade industrial da
segunda
metade do séc. XIX.
"Esta escavação vai permitir conhecer três
séculos de história
portuária", sublinha outro responsável pela
escavação, Alexandre
Sarrazola. Embora esteja ciente de que a
maioria dos vestígios terá
ser destruída depois de devidamente registada
em fotografia e desenho,
o
arqueólogo diz que algumas das peças encontradas poderão vir a
ser
salvaguardadas e mesmo
integradas no projecto do estacionamento, como
já sucedeu com os vestígios do parque de
estacionamento subterrâneo do
Largo do Camões - ou então transportadas para
um museu.
"Face
ao desconhecimento do que ainda pode vir a ser encontrado por
baixo da estrutura de madeira do séc. XVI
está tudo em aberto",
salienta, acrescentando que a decisão final
caberá ao Instituto do
Património Arquitectónico e
Arqueológico.
Impressionante!
ResponderEliminarÉ curioso como esteve ali escondidinho este tempo todo!
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