Duarte Lima: Fixe bem esta palavra - oitiva
No ano de todas as crises, em que a política e a economia sufocaram (literalmente) a sociedade, a justiça seguiu as pegadas do País e manteve a sua atracção pelo abismo. Os casos em torno de Duarte Lima, o alegado assassino que acabou apanhado por lavagem de dinheiro, deram um empurrãozinho – e são um exemplo cristalino dos males que nos afligem.
Se me pedissem para resumir o Portugal de 2011 numa única palavra, eu escolheria esta: ‘oitiva'. ‘Oi... quê?', pergunta o caro leitor, já preocupado com o estado da sua cultura geral. Não se aflija. É perfeitamente natural que não saiba o significado de ‘oitiva'. O procurador-geral da República, Pinto Monteiro, também não sabia o que ela queria dizer quando recebeu do Brasil um pedido de ‘oitiva a Duarte Lima' a propósito da investigação à morte de Rosalina Ribeiro. Vale a pena conhecer esta história exemplar.
Desde 2010, as autoridades brasileiras solicitaram às portuguesas uma série de diligências, entre as quais a ‘oitiva'. Todas essas diligências deram em nada. Confrontado com a falta de empenho do Ministério Público na resolução do caso, Pinto Monteiro deu esta desculpa ao semanário ‘Sol': por causa de tão complexo pedido, havia sido obrigado a efectuar "uma diligência informal prévia com vista a esclarecer o sentido da palavra ‘oitiva', a qual não foi conclusiva por se tratar de terminologia antiga e que mesmo as autoridades brasileiras são dissuadidas de utilizar". O pedido ficou por cumprir.
GOOGLE, SR. PROCURADOR
À falta de dicionários da língua portuguesa, o procurador-geral da República poderia ter ido ao Google. Escrevia ‘oitiva' e logo na primeira entrada (a Wikipédia) teria lido isto: "Comummente utilizada no meio jurídico. Oitiva significa audição, no sentido de ouvir. Exemplo: A oitiva da testemunha é obrigatória." A polícia brasileira queria - imagine-se - que Duarte Lima fosse ouvido. O Ministério Público perdeu-se na tradução.
Das duas, uma: ou o procurador-geral da República não sabe ‘googlar', ou sabe, mas fez-se de engraçadinho. Eu voto no engraçadinho. Pinto Monteiro estava a ironizar com a história da "diligência informal prévia". Estava a contar uma anedota de brasileiros. Estava a praticar sarcasmo judicial. Em 2011, a Procuradoria foi confrontada com o alegado assassinato de uma cidadã portuguesa por um cidadão português e decidiu que a atitude certa não era colaborar com as autoridades do Brasil, mas sim fazer piadinhas.
Eis a razão por que deve, caro leitor, fixar para todo o sempre a palavra ‘oitiva' - ela mostra de forma exemplar como a Justiça portuguesa está virada do avesso, preferindo entreter-se com rodriguinhos de treta em vez de se preocupar com aquilo que está em causa. Afirmou um polícia brasileiro que trabalhou no caso Rosalina: "A Procuradoria levou quatro meses para responder a um e-mail. É mais tempo do que o Cabral levou a vir para o Brasil." Isto, sim, é uma boa piada - embora dê mais para chorar do que para rir. Outro polícia acrescentou: "Aqui estamos preocupados em esclarecer o crime hediondo praticado contra uma senhora indefesa de 74 anos. Em Portugal, o formalismo sobrepõe-se à vida." Não nos poderia ter descrito melhor.
OFFSHORE DA JUSTIÇA
Independentemente da culpa de Duarte Lima, o desleixo e desinteresse com que as autoridades portuguesas acompanharam o homicídio de uma cidadã nacional em quase dois anos é sintomático da forma como quem tem poder é tratado neste País. Vivemos num offshore da Justiça: a trafulhice circula sem pagar imposto e quem conhece as regras do jogo tem probabilidades de passar pelos pingos de chuva sem se molhar.
Duarte Lima seria mais um a ficar enxuto se a sua história pessoal - o homem pobre que vira rico, o barão do PSD caído em desgraça, o benfeitor da leucemia suspeito de um bárbaro homicídio - e os pormenores do crime - as provas reunidas (e divulgadas) pela polícia brasileira são avassaladoras - não fossem tão fascinantes para jornais e televisões. A Procuradoria preferia certamente estar a apanhar banhos de sol numa praia do nordeste brasileiro, mas o País abria a boca de espanto diante da possibilidade de Lima ficar toda a vida sem ter de responder por indícios tão fortes.
Era chato. E como era chato, a justiça justiceira acordou. Numa daquelas coincidências tão grandes que mereciam um lugar no Guinness Book, eis que Duarte Lima é apanhado nas malhas do processo BPN, acabando detido no âmbito de uma investigação de branqueamento de capitais que envolve a compra de terrenos na zona de Oeiras destinados à construção (depois suspensa) das novas instalações do IPO (local, recorde-se, onde Lima ajudou a salvar gente suficiente para alcançar o Céu).
O homem que corria o risco de continuar a sua vida a passear alegremente por Portugal, mesmo que fosse condenado à revelia no Brasil, por causa da falta de acordos de extradição entre os dois países e de bizantinas dificuldades na transposição de sentenças, é subitamente apanhado em casa devido um processo paralelo. A justiça, como bem sabemos, é suposto ser cega. Mas a portuguesa gosta de espreitar por debaixo da venda. E assim, Duarte Lima acaba transformado na nossa versão manhosa de Al Capone, o mafioso de Chicago que acabou preso por fuga ao fisco. Pode tudo isto ter sido um mero acaso e a esta minha conversa não passar de má-língua travestida de teoria da conspiração? Poder, pode. Mas o facto do caso BPN andar a arrastar--se há anos sem efeitos visíveis e a comunicação social ter sido convocada para assistir ao circo da detenção só adensa as suspeitas. Os caminhos da justiça portuguesa são como os do Senhor. Misteriosos
João Miguel Tavares, Jornalista (Cronista do Correio da Manhã)
Estimado Amigo Pedro Coimbra,
ResponderEliminarPelos vistos o Procurador Geral da República deve ter comfundido Oitiva com Oitavo Pat ou Oitavo Machado.
A justiça portuguesa só funciona para quem é pobre porque os grandes vigaristas, assassinos, pedófilos etc e tal ficam sempre se fora.
Veja-se o Altino rsrsrsr, o sobrinho tem um táxina na Suiça, boa, conduzir dessa maneira não existe justiça que lhe pegue.
Abraço amigo
Amigo Cambeta,
ResponderEliminarParece que não há mesmo limites, não é?
Não pode ser asneira.
Tem que ser mesmo propositado.
Aquele abraço
Elucidativo...
ResponderEliminarComo é hábito no João Miguel Tavares, muito bem escrito, VICI
ResponderEliminarCaro Pedro
ResponderEliminarO Artigo é optimo. De facto há uma coisa em Portugal travestida de justiça que quando "interessa" arranja expedientes de adiamento 'Ad aeternum' (fui buscar ao google)
Para proteger os "amigalhaços" mais os amigos dos anteriores e por aí fora.
Abraço
Rodrigo
Rodrigo,
ResponderEliminarRecorro à expressão (feliz!) de um amigo aqui de Macau para caracterizar estas situações - "Caramba, até na merda há que ter classe!"
Nesta trampa toda só há classe no texto.
Aquele abraço
E perceber que tudo começou por causa de uma "oitiva"!?!?!?
ResponderEliminarCoisa que não nos passava pela cabeça, não é António?
ResponderEliminarO que uma oitiva faz, caramba!! :))