Entrevista com Alice Vieira de Paula Freitas Ferreira - DN 3 Agosto 2018
"Existem mulheres sem instinto maternal. A minha mãe não tinha nenhum"
Aos 75 anos, a escritora recorda a infância sem os pais, o tempo que viveu em Paris - privou com Jorge Amado e Pablo Neruda - e diz que se sente privilegiada por ter vivido "duas paixões assolapadas".
Risos. São o princípio e o fim das frases de Alice Vieira, todas as dores transformadas em histórias caricatas. Não são, mas a escritora conta-as assim. Quando fala sobre o segundo tumor que hoje a obriga a visitar muitas vezes o IPO de Lisboa, da mãe que a deu para as tias a criarem, das saudades dos dois Mários que partiram quando a jornalista e escritora ainda vivia em plena curva da felicidade.
Encontrámo-nos na Ericeira, onde estava de férias, um lugar onde todos a conhecem. Viveu com Mário Castrim na antiga vila de pescadores depois de ter regressado de Paris, em 1971. No final desta entrevista, depois de percorrermos a pé os caminhos estreitos que acabam todos no mar, sentámo-nos de novo. Na esplanada do Ouriço (a discoteca mais antiga do país), alguém, sem que tenhamos pedido, pousa duas margaritas na nossa mesa. Alice Vieira é uma estrela na terra e também aqui celebrou - pela sexta ou sétima vez - os 75 anos feitos em março (foram oito festas, no total). De onde vem tanta alegria?
Repete muitas vezes que é, acima de tudo, jornalista, que nunca planeou ser escritora, apesar de já ter publicado perto de 90 obras. Quando é que decidiu ser jornalista?
Aos 18 anos, quando entrei no Diário de Lisboa, onde conheci o Mário Castrim [jornalista e crítico de televisão], o meu primeiro marido. Lembro-me de subir a escadaria do jornal e de ele estar lá em cima. Senti que aquela era a vida que eu queria ter e aquele o homem que eu queria para meu marido. Mas a primeira coisa que escrevi foi para o jornal O Almonda. Devia ter uns 15 ou 16 anos. Nunca escrevi para mim, escrevi sempre para publicar.
Esteve na redação do Diário de Notícias muitos anos, até que decidiu sair. Qual a razão desta saída?
Saí do Diário de Notícias em 1992, depois de ter sido diagnosticada com um cancro na mama. Agora tenho outro, por causa das radiações que recebi no tratamento do primeiro, mas este não é operável, vou de três em três meses ao IPO. Mas, da primeira vez, tinha 40 e poucos anos, e o médico que me operou disse que o cancro estava muito espalhado, tinha muitas metástases. Perguntei-lhe quanto tempo de vida tinha, ele hesitou, mas acabou por me dizer. Restavam-me dois ou três anos. Depois, aconteceu uma coisa engraçada: ele olha para mim e diz: "Como é que vou dizer isto ao seu marido?" [risos ]
Quando saiu do consultório, após receber a má notícia, atravessou a estrada e entrou numa cabina telefónica para ligar a Mário Castrim. Enganou-se e marcou o número do primeiro namorado, Mário Pinto, de quem se separou aos 18 anos porque se apaixonara pelo jornalista e crítico de televisão, um homem 23 anos mais velho e casado. "Foi uma escandaleira", conta. A chamada foi atendida pela mãe do ex-namorado. Alice Vieira reencontraria o "segundo Mário", como lhe chama, muitos anos depois. Teve uma relação com ele 11 anos, até à sua morte, em 2016.
E como é que Mário Castrim reagiu?
Reagiu muito bem. Eu disse-lhe: "Vai ser bom, vou sair do Diário de Notícias, vamos viajar, vai ser o melhor tempo das nossas vidas." E foi isso que fiz. Entretanto, os anos começaram a passar e eu não morria.
Mas continuou com uma ligação ao Diário de Notícias?
Fiquei a colaborar durante muito tempo, escrevia crónicas, e também colaborava com o Jornal de Notícias. Nunca deixei de ser jornalista. Agora colaboro com o Jornal de Mafra, o Almonda, da minha terra, Torres Novas [só veio nascer a Lisboa, como costuma dizer], e com a revista Audácia.
Quais foram os melhores tempos no DN?
[Antes tinha estado no Diário Popular. Saiu do Diário de Lisboa para não trabalhar no mesmo jornal que Mário Castrim.] Os primeiros anos foram muito bons. Entrei em 1975, era uma altura extraordinária, o PREC ainda estava no seu auge. Fiz muitos amigos. Depois, nunca me senti limitada por ser mulher. Houve um dia em que o chefe perguntou quem se oferecia para ir a Madrid por causa de uma entrevista. Eu disse que ia, e houve alguém que veio ter comigo e lembrou-me que eu ainda não tinha ligado ao meu marido a pedir autorização. O Mário era fora da norma. Talvez eu fosse também. A minha filha diz que levou muito tempo a perceber que não tinha uma mãe como as outras. Eu deixava-a fazer tudo o que ela queria.
Também visita muitas escolas, de norte a sul do país, por causa dos seus livros [infantojuvenis].
Sim, sim. Já tenho as escolas todas marcadas para o próximo ano letivo, e são muitas. É cansativo mas eu gosto. Nunca perco a paciência com os miúdos, mais depressa a perco com os professores.
Escreveu o primeiro livro em 1979 - Rosa, Minha Irmã Rosa -, para os seus filhos. Não cresceu com a sua mãe. Como viveu a maternidade?
Prometi a mim mesma que nunca faria o que a minha mãe me fez. A minha mãe deu-me a uns tios-avós. Como eram todos velhos, quando morriam eu passava para a casa de outros tios-avós. Só vivi com os meus pais 15 dias. Da minha primeira filha o parto foi mau, fui operada e fiquei internada. Lembro-me de dizer ao Mário: "Não deixes que me levem a menina." Eu tinha medo que viesse uma tia qualquer e me levasse a filha.
Que razão houve para a sua mãe a entregar?
Não sei. A minha mãe teve mais dois filhos e também os deu para outros criarem.
Nunca lhe perguntou?
Não. E isso foi algo que eu e os meus dois irmãos - e já morreram ambos - nos perguntámos depois de a minha mãe morrer: porque é que nunca tivemos coragem de lhe perguntar? O que eu acho é que existem mulheres sem instinto maternal, a minha mãe não tinha nenhum. Nunca dava um beijo a ninguém por causa dos micróbios e nunca se ria para não ter rugas.
É parecida com ela?
Sou mais parecida com ela, com a família dos Vieiras e Vassalos, que são de Torres Novas. Do meu pai tenho o feitio. Morreu com 93 anos e estava sempre a trabalhar, todos os dias ia para a fábrica.
Como foi crescer com os seus tios-avós?
Acabei por ter imensa sorte porque um desses velhotes contratou uma rapariga para cuidar de mim. Ela é que foi a minha mãe. É a minha tia Aurora, é assim que lhe chamo. Tanto que numa consulta de rotina, o meu médico perguntou se as mulheres da minha família morriam cedo, e eu disse que a minha tia já ia nos 92 anos. Só quando saí do consultório é que me lembrei de que ela não me é nada, geneticamente falando [a mãe de Alice Vieira morreu com pouco mais de 60 anos]. É uma mulher extraordinária. Quando perdi o segundo Mário, há dois anos, houve uma altura em que eu estava mais em baixo e ela veio buscar-me para irmos almoçar às Docas. Achei estranho ela conhecer o sítio [famoso pelos bares e discotecas]. Comentei e ela disse-me: "É muito bom, então à noite..." É uma mulher muito viajada, já deu não sei quantas voltas ao mundo.
Não teve qualquer tipo de relação com a sua mãe?
Só ia a casa dos meus pais no Natal, para dar um beijinho. Dei-me, já em adulta, com os meus irmãos, principalmente com um deles, quando fui para Paris - ele estava lá a fazer o doutoramento. Isso fez-me muito mal [não conviver com a mãe], sentia que devia ser uma pessoa horrorosa. Não sentia o que as minhas amigas na escola sentiam pelas mães, então pensava que era um bocado má.
E com o seu pai?
O meu pai era empregado na fábrica do meu avô materno e satisfazia todos os caprichos da minha mãe - casar-se com ele foi também um capricho. O meu pai foi sempre o empregado. Quando vim de Paris, para vir viver com o Mário [Castrim], ele insistiu para eu ir contar aos meus pais que já estava em Portugal e a viver com ele. Quando contei, a minha mãe nem ligou. O meu pai olhou para mim e disse: "Mas que raio é que ele terá visto em ti?"
Alice dá uma gargalhada sonora e nas mesas ao lado há quem se ria também. Acrescenta: "Não é boa? Ainda estou a ver o ar dele."
Porque é que foi para Paris?
Fui para Paris em 1966 para ir ter com a minha prima Maria Lamas [escritora, jornalista e conhecida ativista política]. Naquela altura ainda se podia ser correspondente de jornais. Vivia num hotel onde só lá estavam políticos emigrados ou fugidos. A dona era a madameSauvage, que nunca deixava entrar ninguém, tinha muito medo que fosse a polícia. Nenhuma de nós tinha dinheiro. Quando não podíamos pagar o quarto, nessa semana ficávamos nós encarregadas da limpeza. Batíamos às portas dos quartos às sete e meia da manhã e as pessoas mandavam-nos embora, porque era muito cedo. Era um truque para não termos de ser nós a limpar.
"Nenhuma de nós tinha dinheiro. Quando não podíamos pagar o quarto, nessa semana ficávamos nós encarregadas da limpeza. Batíamos às portas dos quartos às sete e meia da manhã e as pessoas mandavam-nos embora, porque era muito cedo. Era umtruque para não termos de ser nós a limpar."
Estava na capital francesa no Maio de 1968. Como foi viver esse tempo?
Paris foi a minha universidade. Convivi com tanta gente... O Jorge Amado e a Zélia [Gattai] eram muito amigos da minha prima, o Pablo Neruda, o Manuel Alegre, que estava sempre deitado na minha cama. Iam lá para visitar a minha prima, mas como o meu quarto era maior, era para lá que iam todos. O Maio de 68 foi a liberdade completa. Foram anos que me enriqueceram muito: aquilo que se ouve, que se vê, as conversas que se tem...
Regressa a Portugal e é quando vem viver com Mário Castrim para aqui, para a Ericeira.
Sim, e ia todos os dias para Lisboa, demorava uma hora e três quartos. O Mário não ia todos os dias e era ele quem cuidava da casa e dos miúdos. Mandava o trabalho para o jornal, os textos seguiam de autocarro. Acho que o Mário não escreveu mais por minha causa, para eu poder fazer a vida que fazia. Ele deixou muita coisa escrita, que nunca publicou, mas não vou publicar, se ele não o fez foi porque não queria.
Dois Mários na sua vida. Dois grandes amores?
Completamente. Acho que fui recompensada. Vivi mais de 40 anos com o Mário Castrim. Fomos apaixonados até ele morrer: esteve três meses internado com uma pneumonia. Eu achava que ele ia voltar para casa, já tinha tudo preparado. Foi um choque quando me ligaram do hospital. Depois, contaram-me que ele dizia que se sentia muito mal, mas que pedia para não me dizerem. Sou uma pessoa privilegiada, tanta gente que não conhece nem um amor, nem uma paixão, e eu tive logo duas paixões assolapadas.
O último livro que escreveu foi de poesia, Olha-Me como Quem Chove (Dom Quixote, março de 2018). Está já a escrever outro?
Agora estou a escrever a biografia da condessa de Ségur. Gosto muito de escrever biografias, mas dão muito trabalho. Depois da última que escrevi, da escritora Enid Blyton, que era uma pessoa execrável, fiquei tão marcada que disse na editora que queria escrever outra, mas de uma pessoa boa. Apareceu a condessa de Ségur no horizonte... É a primeira mulher que vive dos direitos de autor, porque ela tinha os netos todos a seu cargo, começou a escrever tarde, o primeiro livro que escreveu foi precisamente para os netos.
"Todos os livros servem para alguma coisa. Eu tenho muita dificuldade em dizer: 'Não leias isso porque não presta.' Nunca digo."
O que acha desta polémica com Os Maias, de Eça de Queirós. Concorda que a leitura da obra não seja obrigatória?
Não é obrigatório, mas devia ser. Todos os anos releio Os Maias e encontro sempre coisas diferentes. Tem de se saber motivar, porque os alunos têm de conhecer coisas um bocadinho mais complicadas, que fazem parte da nossa literatura.
Que livro se oferece a quem não gosta de ler?
Todos os livros servem para alguma coisa. Eu tenho muita dificuldade em dizer: "Não leias isso porque não presta." Nunca digo. Os livros maus que li fizeram-me muito bem, porque me levaram a ler mais. Se os miúdos agora não leem nada são presas fáceis, mas deixem-nos ler, os bons e os maus.
É uma senhora muito simpática. Gosto de vir a Toronto e visitar algumas escolas onde o Português é lecionado.
ResponderEliminarCom uma experiência de vida extraordinária, Catarina.
EliminarQuando a cultura e a experiência se juntam numa pessoa o resultado só pode ser bom.
Bom dia
ResponderEliminarNão sou propriamente muito ligado á cultura , e acho que nunca tinha ouvido falar nesta senhora , mas gostei da entrevista , talvez por ela ter tido a doença da minha companheira e a ter superado , coisa que infelizmente a minha amada não conseguiu.
Continuação de uma boa semana.
JAFR
Quantos são os que sucumbem a essa terrível doença, Joaquim Rosário.
EliminarAmanhã vai passar por aqui um deles.
Aquele abraço
Bom dia, Pedro!
ResponderEliminarGRANDE Alice Vieira!!
Gostei de ler e vou guardar.
Obrigada por partilhares.
Beijo.
Uma Senhora, teresa dias.
EliminarBeijo
Uma pessoa inteligente , que admiro muito.
ResponderEliminarE agradeço a quem tem a coragem de desmistificar o mito de que as mães são sempre boas. Assim já não me sinto só.
Quem pensa que as mãe são todas boas é ingénuo, São.
EliminarE ainda não viu nem viveu o suficiente.
Pelo menos o suficiente para ver mães (biológicas, sublinhe-se, não as que criam e dão carinho e amor aos filhos) maltratar e abandonar os filhos.
uma Senhora que muito admiro. Obrigada por partilhar
ResponderEliminarÉ isso mesmo, Dulce Oliveira - uma Senhora.
EliminarQue post muito bom, meus parabéns. Uma história linda.
ResponderEliminarArthur Claro
http://www.arthur-claro.blogspot.com
Alice Vieira é ela própria uma pessoa linda, Arthur Claro.
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