Reacções às alterações ortográficas

O cê e o pê (Manuel Halpern) e o ph e o y (Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa)

Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa.

Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí.

E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.

Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato.

Caíram hífenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem. Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião.

Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.

As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar.

Manuel Halpern (Visão)



"Na palavra lagryma, (...) a forma d[o] y é lacrymal; estabelece (...) a harmonia entre a sua expressão gráfica ou plástica e a sua expressão psicológica; [substituir]-lhe o y pelo i é ofender as regras da Estética.

Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mistério... Escrevê-la com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformá-lo numa superfície banal."

Teixeira de Pascoaes



"Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal , desde que não me incommodassem pessoalmente. Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.“

Fernando Pessoa

Comentários

  1. Prezado confrade Pedro Coimbra!
    Em 1971, aqui entre nós, teve uma alteração ortográfica, que tive que me adaptar, por exemplo, sei que depois desta alteração a palavra planeta não leva mais o acento cirucunflexo, mas ainda quando a escrevo tenho em mente o acento circunflexo. A partir do ano vindouro a nova alteração ortográfica entrará em vigor, mas já tento me adaptar, como por exemplo, não acentuando mais as palavras ideia, assembleia, jiboia. O mais difícil é escrever benfeito desta forma, quando desejo exprimir um fato bem realizado.
    Caloroso abraço! Saudações ortográficas!
    Até breve...
    João Paulo de Oliveira
    Diadema-SP
    Brasil

    PS - Minha adorada e saudosa mãe nunca se adaptou a reforma ortográfica ocorrida em 1943 e até quando o Mal de Parkinson permitiu escrevia deste modo: pharmácia, sahida, acção, alumno, anno, photo, assucar, prohibido, collocar, creança, creação, dansa, gymnasio, fructa, insecto, electricidade, direcção...

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  2. Como eu compreendo Fernando Pessoa.
    Por mais que custe, irei escrever sempre da maneira que aprendi, claro que vou começar a dar erros ortográficos, mas quero lá saber.
    Valor patriota acima de tudo.
    Páscoa Feliz!!!

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  3. A minha reacção aos acordos ortográficos é ... zero!
    Escrevo como aprendi na escola.
    Não estou acima de nada nem de ninguém mas penso e ajo assim.

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  4. É difíl adaptarmo-nos. Custa-me deixar as consoantes mudas. No entanto, já me custou mais porque penso que o acordo que eu utilizava já era diferente do português do século XIX.

    Tem que haver evolução mas o "ato" nas duas situações que descreve é bem pertinente!

    Boa Páscoa!

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  5. Estamos todos na mesma onda.
    Vai ser muito complicado vir a adoptar o acordo ortográfico.
    Fato é algo que visto.
    Facto é algo que acontece(u).
    E vai ser ssempfre assim.
    Feliz Páscoa para todos

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  6. O ssempfre nõ tem nada a ver com o acordo ortográfico.
    É erro mesmo :))

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  7. Tenho que ir dormir!
    Agora foi "nõ".
    É o sono.

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  8. Ainda sobre o acordo ortográfico.
    Adotá-lo foi uma das minhas decisões de ano novo. Desta vez o acordo veio mesmo para ficar. Para quê lutar contra ele? As línguas continuam a evoluir... o facto é esse! Segundo parece se a consoante se lê, mantem-se, como poderá ser o caso da palavra “facto”. Quando a leio, pronuncio o “c”. Tenho que averiguar se é assim mesmo. Tantas coisas que aprendemos e que se modificaram entretanto havendo necessidade de re-aprender e acompanhar a evolução dos tempos...

    Mas esta é apenas a minha opinião! : )

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  9. Catarina,
    Vai ser muito complicado para mim adoptar o acordo.
    Tenho mesmo uma séria reserva mental acerca do mesmo
    No entanto.....futurologia é algo que não quero fazer.

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  10. Beleza!, diria qualquer brasileiro medianamente Vinicius de Morais. O computador ficou sem imagem, mudei a placa de vídeo e fui parar a terça-feira, 1 de Janeiro de 2002.
    Mas não se ficou por aí. Quando consegui regressar ao sábado, 22 de Dezembro de 2012, ele perguntou se queria retomar o site onde estava quando o mundo se me apagou. Imaginem se eu não me tivesse adaptado à linguagem do computador? Continuaria perdido por 2002 até que uma alma caridosa me reenviasse ao tempo presente.

    Como eh possivel que o ser humano tam criativo, tao sonhador, tenha tanto medo a mudar coisa tao mutavel como umas letrinhas, uns diacríticos, numa escrita? Q horror!
    Nem com textos de exemplo de mudancya?

    P.S.
    Esse y é realmente uma beleza, ateh sexualmente irresistivel. Vejam como ele fica lindo em coracyao, parecendo mesmo a cedilha de ç q em http fica c, e que dah a coração o palavrao coracao.

    Nao tenham medo «tudo eh constante mudancya» e a minha Patria sera a minha mudancya.
    http://joagues.blogspot.pt/

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  11. Joa de Arievilo,
    Nao e medo, desculpe.
    Explique-me o porque desta alteração.
    Porque umas mentes iluminadas acham que vai haver mais vendas de livros no espaço da Lusofonia?
    Acha que vai ser assim?
    E, mesmo que fosse, acha que seria motivo suficiente para alterar grafias e fonéticas tão ricas e variadas?
    Eu continuo a responder nao nas duas situações.
    Se, e quando me apresentarem provas do contrario, poderei mudar de opinião.
    Os meus melhores cumprimentos

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