O primeiro branco
Escrito por Mia Couto
Sábado, 29 Janeiro 2011, 00:00
Os portugueses são o povo mais atrasado da Europa porque há séculos que se misturam com os negros.
Sábado, 29 Janeiro 2011, 00:00
Os portugueses são o povo mais atrasado da Europa porque há séculos que se misturam com os negros.
Quem o afirma é o jornal National Vanguard Tabloid, publicação oficial de uma organização inglesa que defende a “pureza da raça branca”.
É curioso que o editorial da publicação tenha escolhido Portugal como o exemplo dos malefícios da contribuição do “sangue negro” para as sociedades europeias e americanas.
Racismo assim, às claras, é já muito pouco frequente.
O caso é tão raro que vale a pena visitá-lo.
O jornal assenta a sua argumentação em “factos históricos”.
Portugal recebeu os primeiros escravos negros em meados do século XV.
Dezenas de anos depois, os negros já eram 10 por cento do total da população lisboeta.
Essa percentagem viria a crescer para 13 por cento no século seguinte.
A pergunta imediata é a seguinte: estes africanos que destino tiveram?
Regressaram a África?
A resposta é não.
Eles foram absorvidos, misturaram-se do ponto de vista genético, social e cultural.
Eles ajudaram a construir a Portugalidade.
Introduziram valores e dados de cultura.
A palavra minhoca é apenas uma de dezenas de outras marcas no domínio linguístico.
O autor de tal prosa racista do tal tablóide inglês não tem dúvida em identificar nesta mistura de raças e de culturas a razão daquilo que ele chama de “declínio da sociedade portuguesa".
Passo a citar: Os portugueses eram, até então, uma raça altamente civilizada, imaginativa, inteligente e corajosa.
Mas devido ao rápido crescimento da população negra e o correspondente declínio dos brancos (cujos machos estavam em viagem longe da Europa) todo esse património de pureza foi adulterado.
Falo deste caso como forma de reconhecer que os preconceitos rácicos são múltiplos e de múltiplas facetas.
O mundo não obedece a uma fronteira simples que divide os racistas dos não racistas e que separa vítimas e culpados.
Vale a pena, pois, continuar a citar as razões invocadas pelo “National Vanguard”, para a chamada degradação da cultura e enfraquecimento da raça :
O que se vê hoje em Portugal é o resultado de uma mistura não selectiva e uniforme de 10 por cento de pretos e 90 por cento de brancos num todo o homogéneo.
Trata-se de, facto, de uma nova raça – uma raça que estagnou na apatia e nada produziu de novo em 400 anos de História.
A culpa desta estagnação, segundo estes neonazis, reside na liberdade com que os portugueses se “cruzaram” com os africanos.
Isso resultou numa mudança profunda do carácter e da psicologia da nação lusitana.
O “National Vanguard” não tem nenhuma dúvida ao afirmar: “os portugueses do século XVII e os dos séculos seguintes são duas raças diferentes”.
Os articulistas advogam obviamente a favor da separação racial.
Sociedades como a americana contiveram e contêm uma percentagem considerável de negros.
Mas essas “souberam” manter uma céptica fronteira entre os grupos raciais.
Não houve cruzamento nem mestiçagens.
Assim diz o jornal.
Foi essa separação que, segundo a racista publicação, ajudou a manter a capacidade de progresso em países como os Estados Unidos da América.
E conclui: não existe evidência nenhuma que a integração dos negros e dos judeus tenham trazido alguma vantagem em qualquer parte do mundo.
Embora estas publicações sejam casos isolados e representem uma faixa desprezível da opinião pública, a verdade é que não é por acaso que o jornal escolheu Portugal como um caso paradigmático.
Todos nos lembrarmos do que escreveu Kaulza de Arriaga, quando explicava as maiores capacidades dos europeus do Norte em relação aos do Sul.
Os trópicos como evidência de degradação e desumanização é um estereótipo antigo.
Essa atitude de arrogância não é sequer nova.
Uma parte da Europa há muito que lança sobre Portugal um olhar distante e de superioridade racial.
Portugal é, afinal, o país de Eusébio, de Ricardo Chibanga, de Sara Tavares.
Um episódio antigo ligado ao explorador britânico Livingstone ilustra bem como essa Europa olhava e olha para Portugal.
Livinsgtone vangloriava-se ter sido o primeiro branco a atravessar a África Austral.
Um dia alguém lhe chamou publicamente a atenção que isso não era verdade.
Antes dele já o português Silva Porto tinha realizado tal travessia.
Imperturbável, o inglês ripostou:
- Eu nunca disse que fui o primeiro homem a fazê-lo.
Disse apenas que fui o primeiro branco.
Quando se pensa que nada nos vai surpreender…
ResponderEliminarO texto é extraordinário Catarina.
ResponderEliminarMia Couto, se se confirmarem os planos, estará em Macau em Junho para participar em algunas conferências.
Como eu gostaria de poder assistir a algumas das suas conferências! Fiquei “fã” desde que li o primeiro de vários livros que adquiri dele. Fiquei absolutamente encantada... é mesmo o termo... encantada com o seu estilo, a sua forma de escrever, o conteúdo dos seus livros. Tivesse eu o seu email e seria precisamente isso que lhe diria. Boa noite.
ResponderEliminarTotalmente fã também Catarina.
ResponderEliminarE espero estar presente nas conferências.
Caro Pedro Coimbra
ResponderEliminarHá uns tempos chegou-me em cassete, esta canção dum cantor Brasileiro que acabou por ser conhecido por cá mais tarde.
Até aquela data foi um dos melhores manifestos sobre a estupidez do racismo que ouvi.
Quanto a Mia Couto é um dos meus autores preferidos. Embora tenho a enfeitar a estante alguns livros dele que ainda não li, por pura caloíce.
Abraço
http://www.youtube.com/watch?v=j5UKCOGWacg
Mas vale a pena ler Rodrigo.
ResponderEliminarEspero ter o prazer de conhecer pessoalemnet Mia Couto aqui em Macau em Junho.
Abraço
Um grande problema da democracia é deixar espaço para humanóides emitirem opiniões dessas. O outro é que há quem apoie essas posições
ResponderEliminarCarlos,
ResponderEliminarTenho que recorrer ao muito conhecido - "a democracia é um sistema cheio de imperfeições. Mas ainda é o melhor que conhecemos."