Restaurantes não são santuários


Estou cansado da religião dos chefs: restaurantes não são santuários...
O melhor restaurante do mundo?
Ora, ora: é o Eleven Madison Park, em Nova York.
Parabéns, gente.
A sério.
Espero nunca vos visitar.
Entendam: não é nada de pessoal.
Acredito na vossa excelência.
Acredito, como dizem os críticos, que a vossa mistura de "cozinha
francesa moderna" com "um toque nova-iorquino" é perfeitamente comparável às 72 virgens que existem no paraíso corânico.
Mas eu estou cansado da religião dos chefs.
Vocês sabem: a elevação da culinária a um reino metafísico,
transcendental, celestial.
Todas as semanas, lá aparece mais um chef, com a sua igreja,
apresentando o cardápio como se fossem as sagradas escrituras.
Os ingredientes não são ingredientes.
São "elementos".
Uma refeição não é uma refeição.
É uma "experiência".
E a comida, em rigor, não é comida.
É uma "composição".
Já estive em vários desses santuários.
Quando a comida chegava, eu nunca sabia se deveria provar ou rezar.
Os meus receios sacrílegos eram acentuados pelo próprio garçom, que depositava o prato na mesa e, em voz baixa, confidenciava o milagre que eu tinha à minha frente:
– Pato defumado com pétalas de tomate e essências de jasmim.
Escutava tudo com reverência, dizia um "obrigado" que soava a "amém" e depois aproximava o garfo trêmulo, com mil receios, para não perturbar o frágil equilíbrio entre as "pétalas" e as "essências".
Em raros casos, sua santidade, o chef, aparecia no final.
Para abençoar os comensais.
No dia em que beijei a mão de um deles, entendi que deveria apostatar.
E, quando não são santos, são artistas.
Um pedaço de carne não é um pedaço de carne.
É um "desafio".
É o teto da Capela Sistina aguardando pelo seu Michelangelo.
Nem de propósito: espreitei o site do Eleven Madison Park.
Tenho uma novidade para dar ao leitor: a partir de 11 de abril, o
Eleven vai fazer uma "retrospectiva" (juro, juro) com os 11 melhores pratos dos últimos 11 anos.
"Retrospectiva."
Eis a evolução da história da arte ocidental: a pintura rupestre de
Lascaux; as esculturas gregas de Fídias; os vitrais da catedral gótica de Chartres; os quadros barrocos de Caravaggio; a tortinha de quiche de ovo do chef Daniel Humm.
Gosto de comer.
Gosto de comida.
Essas duas frases são ridículas porque, afinal de contas, sou português.
E é precisamente por ser português que me tornei um ateu dos
"elementos", das "composições" e das "essências".
A religião dos chefs, com seu charme diabólico, tem arrasado os
restaurantes da minha cidade.
Um deles, que fica aqui no bairro, servia uns "filetes de polvo com arroz do mesmo" que chegou a ser o barômetro das minhas relações amorosas: sempre que estava com uma namorada e começava a pensar no polvo, isso significava que a paixão tinha chegado ao fim.
Duas semanas atrás, voltei ao espaço que reabriu depois das obras.
Estranhei: havia música ambiente e a iluminação reduzida imitava as casas de massagens da Tailândia (aviso: querida, se estiveres a ler esta crônica, juro que nunca estive na Tailândia).
Sentei-me.
Quando o polvo chegou, olhei para o prato e perguntei ao dono se ele não tinha esquecido alguma coisa.
"O quê?", respondeu o insolente.
"O microscópio", respondi eu.
Ele soltou uma gargalhada e explicou: "São coisas do chef, doutor."
"Qual chef?", insisti.
Ele, encolhendo os ombros, respondeu com vergonha: "O Agostinho".
O cozinheiro virou chef e o meu polvo virou calamares.
Infelizmente, essa corrupção disseminou-se pela pátria amada.
Já escrevi sobre o crime na imprensa lusa.
Ninguém acompanhou o meu pranto.
É a música ambiente que substituiu o natural rumor das conversas.
É a iluminação de bordel que impede a distinção entre uma azeitona e uma barata.
É o hábito chique de nunca deixar as garrafas na mesa, o que significa que o garçom só se apercebe da nossa sede "in extremis" quando existem tremores alcoólicos e outros sinais de abstinência.
Meu Deus, onde vamos parar?
Não sei.
Mas sei que já tomei providências: no próximo outono, tenciono aprender a caçar.
Tudo serve: perdiz, lebre, javali.
Depois, com uma fogueira e um espeto, cozinho o bicho como um homem pré-histórico.
O pináculo da civilização é tortinha de quiche de ovo do chef Daniel Humm?
Então chegou a hora de regressar às cavernas de Lascaux..."


João Pereira Coutinho

Comentários

  1. Coutinho não é alguém que mereça muito do meu apreço, mas desta vez estou completamente de acordo com ele, rrssss

    Boa terça, Pedro

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    1. Eu até gosto de comida gourmet, São.
      Mas achei este artigo, que o FerreirAmigo me enviou, bestial :))
      Boa terça

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  2. Estranho texto. Nao me cativou. Nunca tinha ouvido falar em J.P. Coutinho. Vou pesquisar.

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    1. Eu achei piada, Catarina.
      Eu que até sou fã de comida gourmet, de cozinha de fusão, achei piada.

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  3. Gostei!!
    De facto, a comida gourmet foi concebida, não para ser comida e saciar a fome ou apetite do comensal, mas para ser debicada...a rezar! Boa!! :))

    Beijinhos.

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    1. Gosto de comida gourmet, Janita.
      De vez em quando sabe bem.
      Um bom menu de degustação (será um dia destes num restaurante do Sheraton) até sabe bem.
      Beijinhos

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  4. Vejo que o Pedro, libertou os comentários. Fez bem!
    Isto de vermos logo as coisas escarrapachadas, é outra loiça.
    :)

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    1. escarrapachadas..... ahahahahah

      Concordo contigo Janita. Achei montes de piada ao escarrapachadas. Conseguiste fazer-me rir o que o ... sr. Coutinho nao conseguiu.

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    2. :)) Mas tu, Catarina, percebes dessas minudências da boa mesa e sabes onde e como fazer. Já eu sou muito trivial...gastronomicamente falando!!

      Não conhecias o verbo escarrapachar? eheheh

      Beijinhos para ambos

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    3. Concordo contigo quando dizes ao Pedro que gostas quando ele escarrapacha logo ... hahahahah.... os comentários. Sim, conheço a palavra. Usava-se muito no Algarve também. Só que não a oiço há séculos.
      Fui ler o texto outra vez... ou melhor, a parte que não tinha lido. Continuo a não gostar. É pesado, “forçado”, ou seja, não é natural. Não gosto das alegorias, das metáforas.

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    4. Libertei os comentários por causa das chatices do Blogger nos últimos dias.
      Mas espero não ter outra surpresa como tive quando me vi forçado a reter os comentários...

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  5. Não conheço João Coutinho, mas concordo com seu texto - muito bom. Há restaurantes que a intenção faz parecer que estamos no céu, no paraíso das comilanças, que tudo é o máximo, The Best!!
    E não é bem assim. Tem comida bem feita e mal feita; sofisticada e simples. E só.
    Beijo, Pedro.

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    1. Também já enfiei barretes em restaurantes supostamente excelentes, Tais Luso.
      Dou dois exemplos aqui em Hong Kong.
      De dois chefs muito conhecidos - Gordon Ramsay e Jamie Oliver.
      Que dois barretes que enfiámos!!!
      Beijo

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  6. Também não conheço o autor, mas achei o texto excelente.

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    1. O João Pereira Coutinho escreve muito bem.
      Tem é algumas ideias no mínimo discutíveis, Magui.

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  7. Fantástico! Ou como diria um vendedor de peixe no mercado de Olhão a quem foi solicitado um qualquer exemplar piscícola para fins de cozinha gourmet, o dito vendedor correspondeu com: "qual gourmet, nem gourmet, o pessoal aqui quer é bandulho cheio!" :)

    Abraço

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    1. Nem tanto ao mar nem tanto à terra, Victor Barão.
      Variedade.
      Um bom cozido à portuguesa no domingo com a família em casa, no final de semana será um menu de degustação (gourmet).
      Aquele abraço

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    2. Claro! Eu tão pouco sou radical a este nível, mas dado o texto em causa, foi-me suscitada tal recordação!
      Abraço

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  8. Não conhecia este senhor mas adorei este texto. Muito bom.
    Abraço

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    1. Vale a pena procurar outros textos do autor.
      Alguns bastante polémicos, Elvira Carvalho.
      Abraço

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  9. Um amigo tinha-me enviado esta verdadeira pérola durante a tarde, mas não sabia quem era o autor.
    Já me encarreguei de o informar.

    Forte abraço.

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  10. A quem possa interessar :
    João Pereira Coutinho escreve na última página da revista Sábado.

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    1. Todos os que aqui publicamente afirmaram que não conheciam João Pereira Coutinho agora já sabem onde o podem ler.

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