A primeira civilização ateia
Declarou Vaclav Havel em Setembro de 1994 num discurso na Universidade de
Stanford: "O papel do intelectual é, entre outras coisas, antever, como
Cassandra, as variadas ameaças, horrores e catástrofes. O papel do político é
escutar as vozes de aviso, tomar nota dos perigos e, ao mesmo tempo, pensar
intensamente no modo de os afrontar ou prevenir."
Havel acaba de ser
homenageado pelo seu papel histórico, pelo combate pela liberdade e pela
verdade, como cidadão europeu ou como teórico do "pós-totalitarismo". Foi um dos
grandes pensadores políticos da segunda metade do século XX. Tem, no entanto,
muitas vidas e vozes - do dramaturgo ao boémio, do político ao profeta. Tentou,
ao longo de décadas, deixar-nos um aviso: não tomem nada como automaticamente
garantido, pois a nossa civilização corre o risco de catástrofe. É o trabalho de
Cassandra, o mais silenciado e o que aqui nos interessa.
Em Outubro de
2010, Vaclav Havel surpreendeu alguns jornalistas no discurso de abertura da 14ª
Conferência do Forum 2000 em Praga: "Estamos a viver na primeira civilização
global." Ela tem inúmeras vantagens e um grande inconveniente: cada perigo que
nasce num ponto do mundo pode tornar-se numa ameaça global.
O escândalo
vem na passagem seguinte: "Mas também vivemos na primeira civilização ateia, por
outras palavras, numa civilização que perdeu a conexão com o infinito e a
eternidade." Apontava-lhe dois efeitos. Primeiro, a preferência pelo ganho a
curto prazo. "O que é importante é que um investimento seja rentável em dez ou
15 anos: o modo como afectará as vidas dos nossos descendentes dentro de cem
anos é menos importante."
Segundo: o "orgulho", aquilo que os gregos
denominavam por hubris, a "ideia arrogante de que conhecemos tudo e que aquilo
que ignoramos depressa o descobriremos, porque vamos saber tudo". É a convicção
de que o progresso da ciência, da tecnologia e do conhecimento racional em geral
"induzem crescimento, mais crescimento e ainda mais crescimento, a começar pela
dimensão das aglomerações" - o tema da conferência era a globalização, a
urbanização e o planeta.
"Nós esquecemos o que as anteriores
civilizações sabiam: nada é evidente por si mesmo. Penso que a recente crise
financeira e económica é de extrema importância e constitui, na sua essência, um
eloquente sinal para o mundo contemporâneo." Colheu-nos de surpresa. "É um aviso
contra a desproporcionada autoconfiança e o orgulho da civilização moderna.
(...) O comportamento humano não é totalmente explicável como muitos inventores
de teorias e conceitos económicos acreditam. (...) Vejo a recente crise como um
pequeno apelo à humildade. Como um pequeno desafio para que não tomemos nada
como automaticamente garantido."
Havel suspeita que "a nossa civilização
caminha para a catástrofe", a menos que corrija "a sua miopia e a sua estúpida
convicção de omnisciência, o seu desmesurado orgulho".
Esta intervenção
não encerra novidade, é um tema recorrente em Havel. "A minha principal
preocupação não é o terrorismo", declarou em 2007 ao Nouvel Observateur. "É a
dinâmica suicidária da evolução da nossa civilização planetária. É como se
estivesse obstinada em perseguir objectivos de curto prazo, quando a sorte do
planeta exige um mais agudo e voluntário sentido de antecipação."
"Pela
primeira vez na História, assistimos ao desenvolvimento desenfreado de uma
civilização deliberadamente ateia. Deve alarmar-nos. Quanto a mim, sou apenas
meio crente, pois não adiro completamente nem a um único deus, nem a uma
religião revelada. Tenho, no entanto, a certeza de que tudo no mundo não é
apenas efeito do acaso. Estou convencido de que há um ser, uma força velada por
um manto de mistério. E é o mistério que me fascina." Havel não propõe nem a
conversão religiosa, nem o misticismo, sublinha a espiritualidade e a
necessidade do sentido de transcendência: "A transcendência é a única
alternativa real à extinção."
Preveniu no mesmo discurso de Stanford:
"Sei que, ao dizer estas coisas, corro o risco de que um exército de cientistas
e jornalistas me ponham o rótulo de místico que espalha opiniões obscurantistas.
(...) O risco do ridículo é, no entanto, razão insuficiente para guardar
silêncio sobre aquilo que considero ser verdadeiro."
É uma linha de
pensamento que se filia no próprio passado de combate pela liberdade e pela
verdade na Europa de Leste. Escrevia em 1984: "O maior erro que a Europa
Ocidental poderia cometer seria não compreender os regimes pós-totalitários tal
como eles são em última análise, isto é, um espelho deformador da civilização
moderna no seu todo." A derrota do comunismo não resolveria por si a "doença" da
civilização ocidental.
Sublinhava noutra entrevista de 2007: "O Ocidente
democrático perdeu a capacidade de proteger e cultivar os valores que não cessa
de reclamar como seus. (...) O pragmatismo dos políticos que querem ganhar
eleições futuras, reconhecendo como suprema autoridade a vontade e os humores
duma caprichosa sociedade de consumo, impede esses mesmos políticos de assumirem
a dimensão moral, metafísica e trágica da sua própria linha de acção. (...) Uma
nova divindade tende a suplantar o respeito pelo horizonte metafísico da vida
humana: o ideal de uma produção e de um consumo incessantemente
crescentes."
Havel falou muito de "antipolítica". O politólogo Jacques
Rupnik, seu antigo conselheiro, anotou há dias no Monde: "A "antipolítica"
remete para um défice de legitimidade da política. A política deve legitimar-se
através de qualquer coisa que a transcenda, como valores éticos e espirituais. A
dissidência [anticomunista] não tinha por ambição conquistar o poder e rejeitava
a política como tecnologia do poder."
Este resumo da "profecia" de Havel
é inevitavelmente redutor. O actual momento de crise, a generalização da
insegurança, os conflitos no horizonte - e a experiência dos limites do
"orgulho"- justificam a evocação de uma outra profecia feita em 1994: "Dada a
sua fatal incorrigibilidade, a Humanidade terá provavelmente de atravessar
muitos outros Ruanda e muitos outros Tchernobil antes de compreender quão
incrivelmente míope pode ser um ser humano ao esquecer que não é Deus."
Jorge Almeida Fernandes
Público 2011-12-24
Como eu costumo dizer, é importante vivermos o dia de hoje como se fosse o último mas sem excessos, e mesmo não pensando em nós é importante pensar nas gerações vindouras, afinal falamos dos nosso descendentes. Que mundo lhes vamos deixar se só pensarmos no aqui e no agora, só em nós? Um pensamento muito perigoso é o homem considerar-se um deus...
ResponderEliminarEste artigo é brilhante, Poppy.
EliminarEstava a ficar triste por ninguém lhe dar atenção.
É bom que entendamos que, no esquema das coisas, somos muito pequeninos.
Não tinha lido e agradeço-lhe a partilha, Pedro, porque tinha perdido um excelente texto.
ResponderEliminarUm texto extraordinário e que passou quase despercebido, Carlos.
EliminarExcepcional!!