O DESASTRE ORTOGRÁFICO (Miguel Sousa Tavares - EXPRESSO, 19 de Janeiro de 2013)
Em 1990, quando oito países da CPLP assinaram o Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa, eu era director da revista “Grande Reportagem” e assinei,
conjuntamente com Vicente Jorge Silva, então director do “Público“, e Miguel Esteves Cardoso, então
director de “O Independente”, uma declaração, publicada nos respectivos meios,
comprometendo-nos a não aplicar o dito acordo nas nossas páginas. Passados vinte
e três anos, não mudei de opinião relativamente ao AO: fundamentalmente,
continuo a não aceitar o facto consumado de um acordo saído do nada, a pedido de
ninguém, não negociado nem explicado aos principais utilizadores da língua —
autores, professores, editores, jornalistas — e imposto a dez milhões de
portugueses por uma comissão de sábios da Academia
das Letras do Brasil e da Academia
das Ciências de Portugal.
Sempre temi a ociosidade dos sábios e a tendência leviana dos governantes
para legislarem a pedido das modas intelectuais. Mas nunca pensei que uma nação
que tinha levado a sua língua às cinco partidas do mundo, chegando a ser a
língua franca nos mares do sudoeste asiático até ao dealbar do século XIX, fosse
capaz de voluntariamente, e invocando vagos interesses geocomerciais, propor a
sua submissão às regras em uso num país onde levámos a língua que o unificou.
Por outro lado, não fui sensível ao argumento de que as grafias mudam (sem ser
naturalmente) e ao exemplo, tantas vezes esgrimido, do ‘ph’ reduzido a ‘f’ pelo
AO de 1945 (que o Brasil nunca aplicou, como também não
aplicou o anterior, de 1931…). Não alcanço que extraordinário progresso se
consumou ao deixar de se escrever “pharmácia”, a troco da “farmácia”, e acho
seguramente intrigante que idêntico progresso não tenha contagiado, por exemplo,
franceses e ingleses. que continuam a escrever a mesma palavra com ph. Também
nunca me convenceu o argumento de que o AO facilitaria a penetração da
literatura portuguesa nos PALOP e no Brasil, impossível de alcançar sem ele.
Quanto aos PALOP, basta o facto da recusa de Angola e Moçambique de, até
hoje, ratificarem o AO, preferindo escrever no português que lhes levámos, para
desmentir essa pretensa vantagem; e, quanto ao Brasil, perdoem-me a imodéstia de
invocar o meu testemunho pessoal de quatro livros lá editados, todos com a
referência de que “por vontade do autor, manteve-se a grafia usada em Portugal”
— e sem que isso tenha prejudicado de alguma forma a sua edição, divulgação e
venda.
Oito países falantes de português assinaram o AO de 1990, mas como, após anos
de espera em vão, apenas quatro o tinham ratificado, esses quatro decidiram, em
2008, que eram suficientes para o fazer entrar em vigor. O AO, que entre nós
começou a vigorar aos bochechos em 2009, é, assim, e antes de mais, inválido,
resultante de uma golpada jurídica
não prevista no tratado inicial, que apenas confirmou o voluntarismo idiota
e o abuso político com que todo o processo foi conduzido. Porque nunca conseguiu
convencer quem devia, o AO foi imposto manu militari, por governantes saloios,
desprovidos de coragem para enfrentar os lóbis da “cultura” e convencidos de que
a força da lei há-de sempre acabar por triunfar sobre a fraqueza da sem-razão.
Surdos a todos os argumentos dos oponentes (entre os quais o país deve uma
homenagem de gratidão a Vasco Graça
Moura), desdenhosos perante o abaixo-assinado com 130.000 subscritores
contra o AO, sem um estremecimento de vergonha perante o editorial do “Jornal de Angola” do
Verão passado (que aqui citei na altura), onde se escrevia que, se Portugal não
defendia a sua língua, defendê-la-iam eles, os governantes acharam que o mais
importante de tudo era não desagradar ao Brasil, a cuja presumida vontade fora
dedicado o AO.
Mas eis que na iminência de entrar em vigor plenamente no Brasil, em 1 de
Janeiro passado, uma petição com 30.000 assinaturas levou o Congresso a pedir e
Dilma Rousseff a aceitar a suspensão
da sua entrada em vigor por três anos, para que melhor se medite no diktat
dos sábios. E chegámos assim à situação actual, verdadeira parábola sobre o
destino da sobranceria: neste momento, há três grafias oficiais da língua
portuguesa — a que vigora em Angola, Moçambique, Timor, e que é a anterior
ao AO; a grafia brasileira que é a mesma de sempre, resultante do não acatamento
de nenhum dos três acordos ortográficos assinados connosco, ao longo de 60 anos;
e a de Portugal, que, com excepções ainda autorizadas, é resultante do AO de
1990 — feito, segundo diziam, para “unificar a língua”, agradar aos brasileiros
e não perder influência em África! É notável, é brilhante, é mais do que
prometia a estupidez humana! Perante este facccccccccto, seria de esperar que os
nossos sábios e os arautos dos amanhãs que cantariam no português por eles
unificado pintassem a cara de preto e viessem pedir desculpas públicas. Eu
dar-lhes-ia como castigo a conversão ao AO do “Grande Sertão, Veredas”, de
Guimarães Rosa.
Porque agora, digam-me lá, o que faremos nós, depois de termos obrigado, e
quase arruinado, os nossos editores a converterem em português do AO todos os
livros editados? Depois de termos tornado obrigatórias no ensino as regras do
AO, desde a época passada? Depois de termos convencido prestigiadas
instituições, como este jornal, a submeterem-se ao Conselho de Ministros? Vamos,
como legalmente previsto, tornar o AO universalmente obrigatório para todos a
partir de 2015, vergando de vez os lusitanos que ainda resistem, sem saber se os
brasileiros farão o mesmo no ano seguinte? Vamos correr o risco de ficar a
escrever numa grafia em que mais nenhum país falante da nossa língua escreverá?
Vamos oferecer um banco aos angolanos e a TAP aos brasileiros, em troca de eles
se renderem e terem pena da nossa solidão? Vamos acolher a Guiné Equatorial na
CPLP contra a jura de ratificarem o AO? Vamos exigir aos ilustres embaixadores
aposentados da CPLP o mesmo destemor a defender o AO de que deram mostras a
enfrentar o governo de narcotraficantes da Guiné-Bissau? Ou vamos
conformarmo-nos a ter uma geração de pais que escreve de uma maneira e uma de
filhos que escreve de outra maneira?
Porque uma coisa é garantida: a arrogância dos poderosos não conhece
arrependimento. Eles jamais voltarão atrás, reconhecendo que se enganaram, que
se precipitaram, que foram atrás de vozes de sereias, que se esqueceram de que
há coisas que nenhum país independente cede sem estremecer: o território, o
património, a paisagem, a língua. Trataram isto como coisa menor, como facto
herdado e consumado, de ministro em ministro, de governo em governo, de
parlamento em parlamento, de Presidente em Presidente. Partiram do princípio de
que os portugueses comem tudo, desde que bem embrulhado em frases
grandiloquentes, com a assinatura dos influentes e a cumplicidade dos prudentes.
Mas, dêem agora as voltas que quiserem dar aos acordos que assinaram e à língua
que lhes cabia defender e não trair, cobriram-se de ridículo. Está escrito nos
livros de História: um pais que se humilha para agradar a terceiros, arrisca-se
a nada recolher em troca, nem a gratidão dos outros nem o respeito dos seus.
Apenas lhe resta o ridículo. Oxalá ele chegasse para matar de vez o triste
Acordo Ortográfico!
Compreendo... Que fazer?
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ResponderEliminarNão o implementar, Catarina.
Angola já disse não
O Brasil já adiou
Não faltam precedentes, portanto.
A Academia das Ciências é que foi responsável por isto? No mínimo curioso...
ResponderEliminarNão sou nem nunca fui a favor do AO, e devia ser "desimplementado", ler o nosso português sob o AO é como levar murros nos olhos.
Vai aqui um bom exemplo - espectadores e espetadores (espetam bandarilhas nos touros)
ResponderEliminarUm bocado diferente nao e?
Uns assistem, outros participam muito activamente.
Já o disse : isso do atraso para 2016 é uma boa notícia ! eheh ... Assim, posso estar à vontade a escrever ! ... em caso de dúvida, de uma maneira ou de outra, está sempre bem escrito ! ... ou pelo acordo passado, ou pelo acordo futuro ! resrsrs
ResponderEliminarFaz-me lembrar da publicidade da BIC - 2 escritas à sua escolha, ...
rsrsrs
.
Uma perspectiva curiosa essa da Bic, Rui.
EliminarConfesso que nem me tinha passado pela cabeça :))))
Bravo MST, mais uma vez.
ResponderEliminarO que fazer?
para ja desobediencia. Depois havera que organizar o contrataque de diversas formas como abaixo assinados, exigir um referendo, etc.
Eliminarabel,
Estamos na mesma onda!!
Tanta discussão sobre o acordo ortográfico ( confesso que não me aquenta nem arrefenta, porque não o vou cumprir) , mas poucos se insurgirajm contra o facto de o governo ter publicado NO PORTAL DO GOVERNO, o documento do FMI em...inglês!
ResponderEliminarIsso é que me parece de uma gravidade extrema.
EliminarNão tinha conhecimento dessa bizarria, Carlos.
Aprenderam com Macau???
Que perfeita estupidez!
Das poucas coisas em que MST merece o meu acordo.
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EliminarAntónio,
Lá vou eu repetir - não é bola, cigarros ou caça, o MST aparece no brilhantismo que sabe ter.
Esse homem, quando não fala de futebol ou de política, até que sabe dizer coisas acertadas...
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EliminarBola, caça e cigarros, FireHead.
Esses são temas proibidos para o MST.
Já nos habituámos a ver que alguns políticos não têm vergonha na cara. Não sei se o mesmo se passa com os auto proclamados "inteletuais" (tomem lá esta!).
ResponderEliminarCaro MST, não escreva apenas que foi a Academia de Ciências de Portugal quem produziu esta aberração, por favor, faça uma listagem dos nomes de tão brilhantes académicos
(dos políticos não vale a pena, são um caso perdido)
Alberto de Carvalho
Alberto Carvalho,
EliminarImpor a alteração de uma língua eu só consigo pensar, na nossa História num episódio que teve um desfecho feliz - D. Dinis impor a utilização do português em substituição do latim.
O normal e as línguas evoluírem.
De modo natural, adaptando-se a novas circusntacias do dia a dia.
Querer impor uma alteração, ainda mais com propósitos mercatilistas, terá forçosamente que suscitar resistência dos que
Ficou a meio :))) dos que falam essa língua queria eu escrever.
EliminarOs meus melhores cumprimentos
De facto, a evolução linguística, nunca deveria ser imposta por Lei.
ResponderEliminarNem ninguém será dona dela, simplesmente por a falar à mais tempo, nem mesmo os seus originários falantes, outro facto.
Os brasileiros, sentem tanto o português como sua língua, como os Angolanos ou Moçambicanos, assim como os outros lusófonos.
Não se vê nada parecido em relação às línguas inglesa, francesa ou castelhana. Só mesmo na língua portuguesa, os seus falantes europeus, a tentam por razões geopolíticas, vender a sua língua, com o pressuposto de ganhos económicos num mercado mais abrangente da lusofonia, em especial, o do brasileiro.
Algo que devia ser no mínimo referendado, para que a população toda, pudesse ser auscultada, e não só os "especialistas" na matéria, visto a língua, ter um grau intrinsecamente cultural e identitário com o seu povo, e por isso obrigatória, a sua legitimidade directa por essa via.
A legitimidade legal, foi sumariamente posta em causa, pela "facada mortal" do adiamento do Brasil, espelhando a fraqueza do projecto, e a perseverança daquele país, que talvez por ter maior número de falantes e ambicionar hegemonia linguística, poder ser detentor de "abrasileirar" nos ajustes que achar conveniente do seu ponto de vista ao tal AO, que pelos vistos também duvidam do seu carácter anunciado de unicidade.
TITO COLAÇO,
EliminarRemeto-o para a resposta que deixei ao Alberto de Carvalho.
Uma pura imbecilidade essa intenção de forcar uma alteração por lei.
Mais ainda, neste caso, quer uniformizar-se o que e diverso e e bonito exactamente por ser diverso.
Os autores que escrevem no português utilizado no Brasil nao vendem em Portugal?
E vice/versa?
Até este pseudónimo argumento e tonto.
Os maus melhores cumprimentos
http://escritacomnorte.blogspot.pt/2013/01/desacordo.html
ResponderEliminarJosé Calheiros,
ResponderEliminarO teutónica subloque e excelente.
Convido todos os que aqui passam a lê-lo.
Estou a responder-lhe num iPad que nao me permite tornar-me seguidor do seu blogue.
Algo que passarei a ser amanha.
Os meus melhores cumprimentos
Boa noite, Pedro!
EliminarQuase um ano depois vi o seu comentário! Muito obrigado pelas palavras e será um prazer tê-lo como leitor! Com os melhores cumprimento, até breve!
Boa noite, Pedro!
EliminarSó quase um ano depois vi as suas palavras! Muito obrigado e será um prazer tê-lo como leitor! Com os melhores cumprimentos, até breve!
Um abraço desde Macau, José Calheiros
EliminarMas como fazer, a nível institucional? Eu, enquanto cidadã e em total desacordo com o AO, não o aplico; enquanto professora, estou obrigada desde Janeiro de 2012 a aplicá-lo na escola, em qualquer texto que escreva! esta espécie de esquizofrenia da escrita ainda me dá mais nervos contra aquela aberração, pois vejo a toda a hora as diferenças e o absurdo do Acordo.É terrível depararmo-nos com as mexidas que ele impõe no étimo ou a diferença de tratamento em palavras da mesma família (Egito/egípcio). E o que dizer da palavra "perentório"? Enfim, já se sabe que isto daria "pano para mangas", mas o que interessa agora é o que Portugal, tão apressado que foi nesta questão, vai fazer. E convinha que mostrasse rapidamente uma posição, pois os pequenitos já estão a aprender nas escolas esta cartilha. É de uma grande tristeza este nevoeiro que se abateu sobre a língua.
ResponderEliminarMas como fazer, a nível institucional? Eu, enquanto cidadã e em total desacordo com o AO, não o aplico; enquanto professora, estou obrigada desde Janeiro de 2012 a aplicá-lo na escola, em qualquer texto que escreva! esta espécie de esquizofrenia da escrita ainda me dá mais nervos contra aquela aberração, pois vejo a toda a hora as diferenças e o absurdo do Acordo.É terrível depararmo-nos com as mexidas que ele impõe no étimo ou a diferença de tratamento em palavras da mesma família (Egito/egípcio). E o que dizer da palavra "perentório"? Enfim, já se sabe que isto daria "pano para mangas", mas o que interessa agora é o que Portugal, tão apressado que foi nesta questão, vai fazer. E convinha que mostrasse rapidamente uma posição, pois os pequenitos já estão a aprender nas escolas esta cartilha. É de uma grande tristeza este nevoeiro que se abateu sobre a língua.
ResponderEliminarMaria Eugénia Alves
O maior drama e haver uma geração que já esta a ser educada nesta aberração ortográfica, Maria Eugenia Alves.
EliminarNos, os mais velhinhos, podemos recusar a aplicação do mesmo.
Quem esta a ser educado nesta norma como e que vai diferenciar espectador de espetador, por exemplo?
Os meus melhores cumprimentos
Agora e que percebo que, ao escrever no iPad, e com o corrector automático a pregar-me rasteiras, eu e que estou a assassinar a língua.
EliminarComo, ou sem, AO.
Peco imensa desculpa pelo facto.
Mará Eugénia Alves,
ResponderEliminarTive que copira e publicar o seu comentário.
Não sei como, apareceu-me eliminado.
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Peço desculpa por este lapso.
No que diz respeito à sua atitude, estamos no mesmo barco - não é batota, é desobediência activa.
É isso que também faço aqui à distância (Macau)
"Não se preocupe com isso, nós, os mais velhinhos, percebemos as diferenças... e as culpas das tecnologias.
Mas não respondeu à minha angústia existencial: é que estou amarrada a um protocolo que não me deixa margem de escolha na minha profissão. Ou pouca, pelo menos. Como os alunos de 12º ano só serão obrigados a usar o AO nos exames de 2014, nas aulas, vou fazendo batota, lol!"