Bom e mau desassossego (Frei Bento Domingues)
No início de mais um ano, desejo a todas e todos
um 2013 cheio da paz desassossegada de que fala
Frei Bento
Domingues, neste seu texto para o
blogue Nós Somos Igreja.
BOM E MAU DESASSOSSEGO
Frei Bento Domingues,
O.P.
1. Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na
cidade de Lisboa, é um dos heterónimos criados por Fernando Pessoa. Compôs o
Livro do Desassossego, a sua cobardia: Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa.
Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar;
deveria até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto,
em mim, não de uma aplicação da vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque
não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este
livro é a minha cobardia.
A
vida é um desassossego, também, por uma boa razão. É muito desagradável olhar
para alguém muito satisfeito com ele próprio e com a sua obra. Fica-se com a
impressão de que já morreu e finge que está vivo. O desassossego significa que
uma pessoa ainda não está acabada, ainda tem futuro, está a fazer-se. Uma Igreja
sossegada, convencida de que é a verdadeira Igreja de Jesus Cristo, precisaria
de alguém que lhe lembrasse que parou antes de tempo.
Reuniu-se, no ano passado, em Sínodo, para
abordar a temática da Nova Evangelização. Não faltou quem dissesse que foi quase
um Concílio. Foram abordadas algumas questões importantes, mas não sabemos o que
daí vai resultar. Essa, porém, não é a questão mais importante. Sínodo ou
Concílio é uma reunião de delegados que não receberam delegação da Igreja, do
conjunto dos católicos. Ficar-se sossegado com este método é adiar uma reforma
urgente, por mais desassossego que provoque no mundo católico. Quando, no
Sínodo, se afirmou que é preciso mudar a situação das mulheres na Igreja, alguém
perguntou o que pensam elas, de forma verdadeiramente representativa, do
estatuto que lhes é reconhecido ou negado? Quanto à situação eclesial dos
divorciados casados em segundas núpcias, considerá-los simplesmente como
pecadores - e que, por isso, não podem comungar -, ou dizer que não se trata
propriamente de pecado, mas de uma situação incompatível com a nova aliança
significada na Eucaristia, não se toca na pergunta essencial: Que pensam os
divorciados recasados do estatuto que lhes é atribuído? Será que o verdadeiro
sentido da Fé (sensus fidei) se tornou um exclusivo da hierarquia? Não
pertence ele ao NÓS - sujeito de toda a Igreja - e que a expressão Nós
Somos Igreja reproduz com exactidão?
2. Dadas as conquistas sociais,
culturais e políticas que as mulheres já conseguiram, diferenciadas segundo os
países e continentes, existe a tentação de não olhar de frente os crimes que
continuam a cometer-se contra a parte maior da humanidade. Direitos e deveres
implicam igualdade social de mulheres e homens. A hierarquia católica e as
autoridades de outras confissões religiosas não podem reclamar essa igualdade na
sociedade civil e negá-la no campo religioso, incapacitando-as de se tornarem as
grandes impulsionadoras, a nível local e mundial, de mudanças inadiáveis.
Não se pode dizer que os crimes contra as
Mulheres – violência física, psicológica e social, tráfego de mulheres, comércio
de prostituição – não suscitem movimentos de indignação e de intervenção. Os
níveis de conscientização dos direitos das Mulheres cresceram um pouco por toda
a parte, resultado das suas lutas. Quando se olha, porém, para casos como os que
a imprensa relata todos os dias – muito poucos em comparação com o que realmente
se passa – e dos acontecimentos monstruosos como os que, ultimamente, ocorreram
na Índia e não só, podemo-nos aperceber do que falta fazer. Quase
tudo.
Quando surgem pedidos de abaixo assinados,
quando as organizações de mulheres intervêm publicamente, solicitando adesões e
divulgação, os homens não podem reagir como se fossem “questões de género”. São
questões do género humano, questões de mulheres e de homens, seja qual fôr o
credo religioso, cultural ou político.
As representações da boa relação entre homens
e mulheres aprendem-se no berço, na escola, no namoro, na conjugalidade e até à
morte. É a vida concreta, em todas as idades e situações, que se deve tornar o
caminho de relações de mútua ajuda, libertas e libertadoras.
Desassossegar a situação actual é o melhor
caminho para o bom sossego no futuro.
Que 2013 nos dê uma paz
desassossegada.
Gostei muito e pobres daqueles que já não têm forças para "uma paz desassossegada"...e esses Frei Domingues estão na mira de quem nos governam...que morram para ficarem menos pendentes dos euros para os quais trabalharam que nem loucos.
ResponderEliminarÉ triste dizer isto mas é a dura realidade!
Fatyly,
ResponderEliminarAs reflexões de Frei Bento Domingues, que vai passar por aqui outra vez amanha porque adulteraram uma crónica que publicou no Publico, são sempre oportunas.
De rara sensatez e visão apurada.
Amanha vou corrigir a gafe (?????) do Publico.
Pelo que li, trata-se de mais um progressista. As opiniões, no entanto, valem o que valem e compete-nos respeitá-las.
ResponderEliminarHaja quem questione...
ResponderEliminarGostei de ler.
E bom ano desassossegado :)
Você às vezes parece-me o Diácono Remédios, FireHead :))
ResponderEliminarluisa,
As reflexões e questões de Frei Bento Domingues são sempre pertinentes.
Hoje há mais.
Um ano de paz desassossegada para si também!