O vinho na Bíblia (Padre Anselmo Borges)
Em tempo de vindimas e vinho novo, fica aí uma alusão ao vinho na Bíblia.
1. O vinho é tão importante, com funções tão significativas no convívio social e na vida toda, que os antigos até pensavam que ele era uma criação dos deuses. Dioniso - Baco para os romanos - era o deus do vinho, que ensinou aos homens a arte do cultivo da videira e da preparação do vinho. Ele é de tal modo exaltante que, na leitura dos clássicos, da grande literatura, como belos poemas, grandes tragédias, romances geniais, dizemos que ficamos "inebriados". Diante do esplendor da beleza - o maior exemplo, para mim, é sempre a música, a grande música -, há quem exclame: "Uma bebedeira de beleza!" Num dos mais extraordinários diálogos filosóficos de sempre sobre o amor - o Banquete (Simpósio), de Platão -, lá está o vinho. Na Bíblia, as referências ao vinho são muitas. Tanto no Antigo como no Novo Testamento.
2. No Antigo Testamento, encontramos, logo no primeiro livro, o Génesis, dois textos. O primeiro, com Noé cultivando uma vinha, "a mais preciosa e nobre de todas as plantas da Bíblia" (Ariel Álvarez). Noé adormeceu com uma bebedeira e o filho Cam entrou na sua tenda e viu a sua nudez e foi amaldiçoado. E há outro pai, Lot, que as filhas embebedaram para poderem ter relações com ele e descendência. (Note-se que se trata tão-só de narrações com finalidade política: diminuir os cananeus, os moabitas, os amonitas, com os quais Israel tinha relações tensas. Para rebaixá-los, estas narrativas põem estes povos a descender de relações incestuosas, e não se esqueça que o incesto é, para a Bíblia, um dos pecados mais aberrantes.)
Veja-se este texto de exaltação do vinho, no livro de Ben Sira: "O vinho é como a vida para os homens, se o beberes moderadamente. Que vida é a do homem a quem falta o vinho? Ele foi criado para alegria dos homens [aqui, digo eu: e das mulheres]. Alegria do coração e júbilo da alma é o vinho, bebido a seu tempo e moderadamente."
3. O vinho está bem presente no Novo Testamento. Assim, na Primeira Carta a Timóteo, é recomendado ao discípulo de São Paulo que beba vinho: "Doravante não bebas só água, mas toma um pouco de vinho."
No Evangelho, acusam Jesus de "comilão e beberrão". Escandalizavam-se, mas Jesus não exclui ninguém, o Reino de Deus e a sua alegria são também para os pecadores. Essa foi a sua mensagem por palavras e obras. Participou em banquetes com publicanos e outros, que eram ricos, mas não levavam uma vida justa. Alguns seguiram-no, como Mateus, e Zaqueu converteu-se, deixando de explorar o povo.
Lê-se no Evangelho segundo São João, que logo no início da sua vida pública Jesus transformou a água em vinho. Ele encontrava-se com os discípulos numas bodas de casamento, em Caná da Galileia. Faltando o vinho, Maria, sua mãe, deu-lhe a triste notícia. E o que é facto é que o vinho apareceu. E em abundância: 600 litros. E vinho esplêndido, a ponto de o chefe de mesa chamar o noivo para lhe dizer: "Toda a gente serve primeiro o vinho bom e, quando tiverem bebido bem, serve então o inferior. Tu, porém, guardaste o vinho bom até agora!" Assim, diz o evangelista, inaugurou Jesus os seus sinais. Que sinais? É isso: o Reino de Deus é para todos e é o Reino da humanidade boa, justa e feliz. Como podia faltar a alegria do vinho numa festa de casamento, símbolo do encontro de Deus com a humanidade? É o vinho novo e, por isso, diz Jesus: "Ninguém deita vinho novo em odres velhos; se o fizer, o vinho romperá os odres e perde-se o vinho e os odres. Deita-se vinho novo em odres novos."
Outro passo, inesquecível, é o da Última Ceia. Sim, o Reino de Deus é para todos, mas nem todos estão interessados em que seja para todos. Por isso, Jesus pôs o dedo na ferida, escalpelizou a indiferença e a opressão, nomeadamente por parte de quem explorava em nome da religião oficial, e, assim, foi condenado à morte pelos sacerdotes e mandado executar pelo representante do Império, Pôncio Pilatos. Nas vésperas da sua entrega, ofereceu uma ceia, a Última Ceia. Nela, tomou o pão: "Tomai e comei todos. Isto é a minha vida entregue por vós." Também o cálice com vinho: "Este é o sangue da Nova Aliança." "Fazei isto em memória de mim." Desde então, os discípulos, que acreditaram que Jesus está vivo em Deus, pois não morreu para o nada, mas para a plenitude da vida de Deus, que é Amor, reuniram-se em banquetes festivos e fraternos. E fizeram memória de Jesus. E o pão é o pão da vida, que dá força para os caminhos da existência com Deus e em solidariedade activa com a humanidade. E o vinho é o vinho da alegria partilhada com todos.
Jesus disse que não voltaria a beber do fruto da videira, "até àquele dia em que o hei-de beber de novo convosco no Reino de Meu Pai". E é esta esperança, a esperança do vinho novo na plenitude da festa e da alegria do Reino de Deus que, de uma maneira ou outra, anima a todos. Infelizmente, embora isso talvez fosse uma inevitabilidade, as Eucaristias de hoje estão muito longe, no modo como são celebradas, de ser antecipações vivas dessa alegria festiva na sua plenitude. No princípio, era diferente.
in DN, 15.10.2016
Este (Anselmo Borges) é um homem superior, Pedro.
ResponderEliminarAbraço.
O meu pai, que foi aluno dele, não se cansa de dizer isso, Ricardo.
EliminarAbraço
Recomeçando...
ResponderEliminarUma crónica riquíssima de simbolismos e o homem é figura principal.
Ergamos os nossos copos e brindemos á alegria e à nossa saúde.
Eu que bem precisado Ando.
Abraço, Pedro.
Uma, mais uma, crónica brilhante, Agostinho.
EliminarSe não fosse abstémio propunha um a Anselmo Borges.
Aquele abraço
Um brinde, obviamente
EliminarE eu que sempre repudiei o vinho, sem nunca ter ingerido uma gota dele.
ResponderEliminarComo sempre, brilhante!
A linguagem utilizada para exprimir uma ideia tão bonita é na realidade simplesmente brilhante, CÉU.
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