CONVERSEM UNS COM OS OUTROS (Tolentino de Mendonça)
É EVIDENTE QUE HOJE CONTINUAMOS A CONVERSAR, MAS PARECE QUE CONTAMOS MENOS COM O QUE DAÍ PODE PROVIR
Vi uma vez, à entrada de um café, este aviso gentil impresso em tamanho garrafal, impossível de passar despercebido: “Não temos Wi-Fi. Conversem uns com os outros”. E, como tudo na vida, há quem o lesse e entrasse no estabelecimento a sorrir e há quem, com visível desconforto, procurasse outro poiso. Conversar com os outros — ainda o saberemos fazer? Penso em algumas pinturas que representam a história humana como uma conversa. No célebre fresco de Rafael, intitulado “Escola de Atenas”, onde a emergência do pensamento filosófico é contada como uma sucessão interminável de conversas: a de Platão e Aristóteles no centro, mas também a de Sócrates, Epicuro, Heraclito, Euclides, Pitágoras ou a da única mulher ali citada, Hipácia, uma importante matemática e astrónoma de Alexandria. Mas penso também nas conversas dos ceifeiros de Bruegel, onde se vê, sob a tortura da fadiga imposta, como a palavra partilhada é um reduto e um alimento. Ou nesse autorretrato de Matisse, conversando com a mulher, ele de pijama azul às riscas, ela de robe verde, a mesma cor da janela aberta sobre uma manhã despreocupada de verão, há mais de cem anos atrás. Não seríamos o que somos sem a conversa.
É evidente que hoje continuamos a conversar (e a cavaquear, a confabular, a conferenciar, a grulhar, a parlamentar, a prosear, etc.), mas parece que contamos menos com o que daí pode provir. Mesmo se não o reconhecemos, à custa de recorrermos a um conhecimento prefabricado que nos é servido num ecrã, tornámo-nos menos curiosos pelo mundo do outro que temos diante de nós. Neste afã por conectar com o distante, empobrecemos a relação com o que está próximo. O nosso discurso povoa-se de intermitências. Estamos e não estamos. A concentração dura o instante de um relâmpago. O tempo real de escuta cai. O baraço que permitimos ao desenvolvimento da palavra é sempre mais curto, porque nesta nossa época o que não for imediato não existe.
Neste afã por conectar com o distante, empobrecemos a relação com o que está próximo. O nosso discurso povoa-se de intermitências. Estamos e não estamos
As conversas, porém, precisam de tempo. São as deambulações, as digressões e as derivas que nos conduzem à ciência do encontro, que nos desarmam enquanto falamos ou escutamos, que nos sobressaltam ou comovem, que nos deslocam interiormente, que nos interligam. Montaigne definiu a conversa como “um falar franco que abre caminho a um outro falar”. É um belo modo de descrever aquilo que numa conversa verdadeira acontece, quando a confiança oferecida pela palavra e sustentada pela escuta autorizam a expressão desse “outro falar” que está submerso em nós, que espera uma oportunidade de ser dito, e já não se manifesta apenas em palavras, mas numa experiência plena do tempo. Frequentar os outros capacita-nos para o encontro connosco mesmos e o conhecimento próprio dá-nos chaves para viver a aventura da alteridade. A conversa serve-nos de caminho para essas grandes viagens. Ela ensina-nos aquilo que Montaigne observava: que “a palavra pertence em parte àquele que fala e em parte àquele que escuta”. A vida é, de facto, essa circularidade, essa procura do quinhão que nos falta, essa entrega ao outro da metade que nos coube trazer até aqui, e que ele poderá continuar de uma forma imprevista, talvez ainda mais límpida do que aquela de que fomos capazes. Por isso, persiste sempre uma tensão na experiência da conversa. O autor dos “Essais” compara-a ao que acontece numa partida de ténis. Os interlocutores não estão estáticos. Mesmo parados movem-se, segundo a geometria da bola que voa de campo a campo. E o importante, por fim, não é fazer vencer as minhas ideias, nem se adequar às do outro, mas reagir em sintonia, compassar, cadenciar, aprender a alegria da troca.
Bom dia
ResponderEliminarComo gosto de falar e fazer amigos , sinto uma angustia muito grande quando estou em lugares onde o posso fazer , e não há uma única pessoa com quem possa ter um dedo de conversa , pois já estão todos a conversar , não sei com quem !!
JAFR
Chega a ser irritante, Joaquim Rosário.
EliminarTuristas, a passear pelas cidades, a olhar para o telemóvel.
Tira-me do sério!
Bom Dia:)
ResponderEliminare eu que tanto gosto de conversar! A minha experiência nem é tanto a de um wi-fi que não permite conversas ou olhares, isso encontro mais nos transportes públicos e ficamos com aquele sentimento de quem está e não está, os nossos vizinhos não são nossos vizinhos senão no espaço que ocupam ao nosso lado.
Mas tenho outra experiência que não é menos constrangedora. Talvez por excesso de solidão, ou qualquer outra causa, as conversas tendem ao monólogo, cai-nos em cima uma catadupa de informação não requerida. Nós queríamos conversar mas o interlocutor quer contar e contar. Se arriscamos alguma coisa e a meio nos calarmos ele não pergunta paraste porquê, simplesmente não nos ouviu. Se tu páras, o que ele entende é que o semáforo está verde e lança-se noutra espantosa digressão. Ter com quem conversar é cada vez mais difícil. Com o telefone acontece algo semelhante. Horas de conversa só de um lado e a que o outro vai acrescentando "pois", "exactamente", "é mesmo". No final, há um rebate do falador para perguntar está tudo bem, os filhos, o pai, o irmão. E é claro que o interlocutor entende que não interessa nem um pouco e, já farto, para abreviar responde sim.
Que fazer? Nada, além de ir ouvindo e retirando algumas lições acerca de quem conta. No afã de contar nem dão por ir-se despindo, despindo. E o que se vê é às vezes enternecedor e até um pouco palerma, mas outras tão feio. E talvez nos reste a nós estes pequenos desabafos em diferido, que uns lêem e a maioria não. Por serem longos e parecidos com as conversas dos nossos interlocutores reais:). Que fazer?!
Bom Dia:)
Por aqui, ao telefone, têm mais a mania de responder hum, hum.
EliminarJá mais que uma vez terminei a chamada a dizer que podemos falar amanhã outra vez e contar até dois :))
Bem lembrado Pedro.
ResponderEliminarComo diz Montaigne a conversa é um falar franco que abre caminho a um outro falar, e observa que a palavra pertence em parte àquele que fala e em parte àquele que escuta.
Como diz bem a Bea o falar por vezes torna-se monólogo.Horas de conversa só de um lado e a que o outro vai acrescentando "pois", "exactamente", "é mesmo".
Que fazer? Nada. No afã de contar nem dão por ir-se despindo, despindo. E o que se vê é às vezes enternecedor e até um pouco palerma, mas outras tão feio.
E que disse eu? Nada. Limitei-me a copiar e a colar o que vocês disseram. Nada acrescentei. Contudo, fiquei mais rico; e vocês ficaram mais pobres?
Seja bem vindo Joaquim Ramos.
EliminarE sinta-se à vontade para comentar como bem entender.
Olá Pedro!
ResponderEliminarLi esta crónica no jornal e sublinhei, recortei e guardei, como faço com todas de Tolentino, agora o NOSSO CARDEAL!
Beijo.
Um ser superior, teresa.
EliminarQue Deus o ilumine nesta nova missão.
Beijo
É bem verdade! Cada vez menos falas...apenas olhares nas telinhas...abraços,chica
ResponderEliminarAté a andarem em plena rua, chica.
EliminarQue estupor de vício!
Abraços
Julgo que este problema começa na infância. As crianças brincavam com as outras em jogos e actividades que as "obrigavam" a falar, rir, saltar, gritar e perguntar.
ResponderEliminarComo professora (do 1* ciclo) que sou vejo isso cada vez menos. À medida que crescem este problema agudiza-se.
E agora o que pensam as pessoas daquelas que numa sala de espera, num transporte público " metem" conversa? Sorriem e pensam: que ridículo! Não se sabe pôr no seu lugar!
Perante isto, que fazer? Eu acho que se devem mudar mentalidades e começar bem cedo!
Cumprimentos da Maria do Porto
Começa com os pais e o dever de dizer aos filhos que limitem o uso dos telemóveis e interajam mais.
EliminarO que é complicado quando são os pais os primeiros a pegar na porcaria do telelé.
Cumprimentos
Vamos conversando...
ResponderEliminarMesmo virtualmente, já é alguma coisa...
Melhor que nada.
Beijinho
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