Laicidade e laicismo (Anselmo Borges)
1 O Papa Francisco, na visita ao Brasil, deixou uma mensagem fundamental sobre a laicidade: "A convivência pacífica entre as diferentes religiões vê-se beneficiada pela laicidade do Estado, que, sem assumir como própria nenhuma posição confessional, respeita e valoriza a presença do factor religioso na sociedade."
A laicidade do Estado, isto é, a sua neutralidade confessional, é essencial para garantir a liberdade religiosa de todos: ter esta ou aquela religião, não ter nenhuma, mudar de religião. Aliás, a laicidade é exigida pela própria religião. Porque confundir religião e política significa ofender a transcendência de Deus, e também porque só homens e mulheres livres podem professar de modo verdadeiramente humano uma religião.
Mas, para compreender o alcance da afirmação de Francisco, impõe-se a necessária distinção entre laicidade e laicismo. Uma distinção que, refere o teólogo José María Castillo, é reconhecida pelo Dicionário de Língua Espanhola da Real Academia Espanhola na sua última edição. O laicismo rejeita toda a influência ou presença religiosa nos indivíduos e nas instituições, públicas ou privadas. A laicidade admite esta influência, mas, atendendo a que há várias confissões religiosas, impede que o Estado aceite como própria uma só confissão e respeita-as a todas por igual. Se aceitasse alguma como própria e oficial, acabaria com a igualdade de todos os cidadãos.
Mas não haverá hoje cada vez mais uma deriva para confundir laicidade e laicismo?
2 Na sua célebre "Carta aberta ao mundo muçulmano", que aqui citei no passado sábado, o prestigiado filósofo muçulmano Abdennour Bidar critica veementemente o seu "querido mundo muçulmano", porque, em vez de aceitar as suas responsabilidades, acusa o Ocidente. Ora, o mundo muçulmano tem de reconhecer o seu mal. Assim, escreve: "A recusa do direito à liberdade face à religião é uma das raízes do mal de que sofres, meu querido mundo muçulmano, um dos ventres obscuros onde crescem os monstros que atiras há alguns anos à cara aterrorizada do mundo inteiro. Porque esta religião de ferro impõe a todas as tuas sociedades uma violência insustentável (...) Ainda associas a religião e a violência - contra as mulheres, os "maus crentes", contra as minorias cristãs ou outras, contra os pensadores e os espíritos livres, contra os rebeldes -, de tal modo que esta religião e esta violência acabam por confundir-se, no caso dos mais desequilibrados e frágeis dos teus filhos, na monstruosidade da jihad. É necessário que comeces por reformar toda a educação que dás aos teus filhos, que reformes cada uma das tuas escolas, cada um dos teus lugares de saber e de poder. Que os reformes para dirigi-los segundo princípios universais (mesmo se não és o único a transgredi-los ou a persistir na sua ignorância): a liberdade de consciência, a democracia, a tolerância e o direito de cidadania para toda a diversidade das visões do mundo e das crenças, a igualdade dos sexos e a emancipação das mulheres de toda a tutela masculina, a reflexão e a cultura crítica da religião nas universidades, na literatura, nos media. Já não podes recuar, já não podes fazer menos do que isto. Já não podes fazer menos do que a tua revolução espiritual mais completa."
Bidar exige, pois, a laicidade plena. Mas isso não significa laicismo. Os intelectuais ocidentais, escreve, "vivem em sociedades tão secularizadas que não se lembram, de modo nenhum, de que a religião pode ser o coração do reactor de uma civilização humana. E que o futuro da humanidade passará amanhã não só pela resolução da crise financeira e económica, mas de modo bem mais essencial pela resolução da crise espiritual sem precedentes que atravessa a humanidade inteira. Saberemos juntar-nos todos, à escala planetária, para enfrentar este desafio fundamental? A natureza espiritual do homem tem horror ao vácuo e, se não encontrar nada de novo para preenchê-lo, fá-lo-á amanhã com religiões cada vez mais inadaptadas ao tempo presente que, como o islão actualmente, se porão a produzir monstros".
3 Há algo que diz mais respeito à espiritualidade do que à economia, reconhece o filósofo, "ateu fiel", André Comte-Sponville. "O Ocidente cristão já não é o cimento das nossas sociedades. A moral fica fragilizada com isso. A esperança, ainda mais. A morte, para uma proporção crescente dos nossos concidadãos, já não é um passamento, pois encontra o nada. A vida terrestre torna-se mais preciosa (uma vez que se crê cada vez menos numa outra vida), mas também cada vez mais desarmada, desorientada, angustiante. Aí estamos nós, perdidos no universo imenso e insignificante. A ameaça do niilismo é uma triste evidência. Mais uma razão para combatê-lo."
4 Não é com um laicismo despudorado, que chega a escandalizar-se pelo facto de o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, católico praticante, ter beijado o anel do Papa Francisco, que se vai superar a nossa desconfiança niilista.
in DN 09.04.2016
Aprendo sempre imenso com este senhor.
ResponderEliminarUm abraço
O meu pai teve a felicidade de o ter como mestre, Elvira Carvalho.
EliminarE ficou a adorar o grande Anselmo Borges.
Um abraço