Depoimento póstumo da cientista Maria de Sousa de 80 anos, falecida a 14 de Abril com covid-19
A cientista Maria de Sousa, ao saber que estava infectada com covid-19 e consciente da sua situação de alto risco, despediu-se dizendo:
“Espero perdurar por via dos que ficam vivos”.
Por mais dolorosa e triste que seja a morte, a vida tal como a conhecemos na Terra é infinita. As novas gerações sucedem-se ciclicamente e cabe sempre a elas a construção do nosso futuro colectivo.
Faz parte de ser jovem estar convencido de que vamos ser capazes de mudar o mundo para melhor.
Eu já não sou cronologicamente jovem, mas continuo a acreditar num cenário optimista para o futuro da humanidade!
É preciso coragem para mudar, sobretudo quando o nosso estilo de vida actual é tão confortável.
No entanto, as evidências científicas são irrefutáveis: a exploração que o homem está a fazer da natureza é insustentável.
Vivemos obcecados pelo crescimento económico, mas não é possível que as economias de todos os países continuem a crescer indefinidamente. Considero fundamental que os jovens de hoje se consciencializem dos inevitáveis riscos a curto prazo e façam ouvir a sua voz, pressionando a sociedade para a mudança.
Acredito que a ciência e a tecnologia vão tornar-se ainda mais essenciais nas nossas vidas. Precisamos de observações e medições rigorosas de tudo o que se passa em todos os locais do planeta para estarmos alerta e sabermos onde actuar. Mas acima de tudo precisamos de novas soluções para viver em harmonia com a Terra, desde novas formas de nos deslocarmos a novas formas de nos alimentarmos e reciclarmos o lixo que produzimos. Novas soluções para um problema não surgem de repente a partir do nada. São necessários anos de intensa investigação científica, e muitos problemas estão ainda por resolver.
Por exemplo, a propósito da actual pandemia, importa lembrar que entre 1918 e 1919 ocorreu um surto de infecção causada por um novo vírus da gripe que matou cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo. Já se usavam máscaras de protecção, desinfectantes e distanciamento social, mas não havia testes de diagnóstico, nem medicamentos, nem ventiladores. A 1ª vacina para a gripe foi desenvolvida em 1940 e aplicada apenas em militares. Só em 1960, após uma pandemia causada por um novo vírus da gripe que entre 1957 e 1958 matou mais de um milhão de pessoas em todo o mundo, iniciaram-se os programas de vacinação para grupos de risco (isto é, pessoas com doenças crónicas ou com mais de 65 anos). Uma vacina confere imunidade contra um tipo específico de vírus. Ora, o vírus da gripe altera com muita frequência a sua informação genética, dando origem a novas formas de vírus que escapam ao efeito da vacina. Esta diversidade genética dá também origem, ocasionalmente, a formas de vírus mais agressivas que causam pandemias. Foi o que voltou a acontecer em 1968, com mais de um milhão de mortes em todo o mundo, e apenas há dez anos, em 2009, causando a morte de cerca de 600 mil pessoas a nível mundial. Porque a capacidade de se reinventar geneticamente é uma característica de todos os vírus, a humanidade sempre esteve e vai continuar a estar sujeita a surtos de infecção por novos vírus. Foi o caso do VIH – vírus da imunodeficiência humana, causador da sida. Esta nova doença começou a ser detectada em 1981 nos EUA e já matou 32 milhões de pessoas no mundo. Em 1994, a sida era, nos EUA, a principal causa de morte de pessoas entre os 25 e os 44 anos. Só em 1995 começaram a ser ensaiados os primeiros medicamentos que viriam a ter um grande sucesso, evitando as mortes e transformando a sida numa doença crónica.
Mais recentemente, em 2003, foram reportados na China os 1ºs casos duma nova doença respiratória denominada SARS, causada por um coronavírus parente do actual SARS-CoV-2. Em plena pandemia, a sociedade pede muito aos cientistas medicamentos e vacinas eficazes.
Que lições tirar para o futuro? Acima de tudo, as novas gerações têm de estar conscientes de que vão ser confrontadas com grandes desafios. A falta de respeito pelos animais selvagens, vítimas de captura e comercialização, favorece a infeção humana por novos vírus (ou outros micro-organismos patogénicos) que poderão causar mortalidades bem mais altas do que a actual pandemia. Muitos modelos ainda praticados na indústria agropecuária incentivam a destruição de florestas, interferem com a qualidade dos solos, são poluidores e favorecem a propagação de epidemias em plantas e animais. Vão certamente ocorrer grandes desastres naturais como fogos, tempestades e terramotos. As alterações climáticas são uma realidade instalada. Vai faltar a água e aumentar a poluição. As sociedades do futuro vão depender da ciência e da tecnologia para lidar com catástrofes. Mas as sociedades de hoje insistem em ignorar os múltiplos alertas dos cientistas para perigos eminentes que ainda podem ser evitados.
Por isso, deixo aqui o meu apelo às novas gerações para acabarem de vez com a ilusão de que vai ser possível continuar a viver com os hábitos de hoje e a fazer os negócios do costume. O meu outro apelo é para valorizarem e cultivarem a ciência. Todos os jovens, independentemente das suas profissões futuras, devem ser treinados a aplicar o método científico nos problemas com que se deparam no dia-a-dia. Rigor na observação, raciocínio lógico nas deduções, conclusões baseadas em experimentação. Em paralelo, as profissões ligadas à ciência têm de ser atractivas e apetecíveis. Tal implica organização, infraestrutura e recursos em permanente actualização.
Finalmente, um alerta: todas as áreas do saber são igualmente importantes. Os avanços tecnológicos mais transformativos resultaram de descobertas que podiam, à primeira vista, parecer irrelevantes. Para o avanço da ciência não há temas de investigação inúteis, desde que as perguntas sejam bem formuladas.
E a ciência não pode deixar de avançar, sob pena de não sermos capazes de resolver os imensos desafios com que nos vamos deparar!
Já me parecia que era uma pessoa excepcional e uma grande perda para todos
ResponderEliminarSem dúvida, Gábi, gente superior.
EliminarJá conhecia porque a minha filha mais velha mandou-me ler este e outros artigos desta grande senhora. Eu acho Pedro que gostarias de falar com a minha filha não por ela mas como cientista que é. Dou-te um pequenino exemplo: ela era contra a pulverização/desinfestação das ruas com os produtos usados. Minha nossa ficava fora dela:))) e não é que a OMS ouviu-a? Pois.
ResponderEliminarO mal da ciência é que por vezes há superiores que são uma autêntica nódoa quer no saber...quer no chefiar de equipas e a prova está nos Bolsonaros e Trumpes deste mundo.
Beijos e um bom dia
A diferença entre ser chefe e líder, Fatyly.
EliminarSer chefe é muito fácil.
Ser líder é muito complicado e são muito poucos os que o sabem ser.
Beijos
"...acima de tudo precisamos de novas soluções para viver em harmonia com a Terra, desde novas formas de nos deslocarmos a novas formas de nos alimentarmos e reciclarmos o lixo que produzimos…."
Eliminaro texto é todo ele muito pertinente e foca as questões que se colocam a quem pensa um pouco sobre a corrida que nos é imposta para que mais produtos sejam criados, vendidos, comprados, usados, e mais detritos que são difíceis de eliminar…
uma senhora com muito conhecimento e sensibilidade e o testemunho dela merece ser partilhado por um grande número de pessoas
boa semana Pedro,
Angela
Uma Senhora excepcional, Angela.
EliminarQue deu muito de si à ciência.
São estas pessoas que nos fazem continuar a acreditar no futuro. Como testamento é lindíssimo.
ResponderEliminarOntem publiquei o muito bom e o muito mau, bea.
EliminarVamos dar atenção ao muito bom e troçar do muito mau.
Um prazer chegar até aqui após uma pesquisa no Google e encontrar textos tão particulares em seu blog. Estarei acompanhando. Parabéns pelo trabalho que faz aqui
ResponderEliminarPor oportuno, gostaria de lhe fazer o convite para visitar o meu novo trabalho em https://www.enfoqueextrajudicial.com.br Um projeto que estou recomeçando depois de um bom tempo fora da Blogosfera e que pra mim seria uma honra tê-lo como seguidor. Que seus dias sejam repletos de paz e sabedoria. Deus o abençoe
Só agora vi a mensagem.
EliminarAmanhã terei todo o gosto em retribuir a visita.