Carícias de Deus (Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia)


(...) Também a Igreja enquanto organização necessita de limpeza. Morreu, em Tóquio, na passada Quinta-Feira, dia 20 de Maio, o Padre Adolfo Nicolás, antigo superior-geral dos jesuítas. Num texto emocionado, José M. Castillo, revela como no seu último encontro, em Roma, poucos dias antes de se saber da renúncia ao papado de Bento XVI, quando se estavam a despedir, ele lhe disse algo que o marcou profundamente: “Reza, reza muito pela Igreja. Porque para pior do que está agora não creio que possa cair”. E aí está Francisco a dar uma viragem à Igreja, apesar de todas as resistências. E o problema são mesmo as resistências. Numa entrevista recente, o conhecido vaticanista Marco Politi, afirmou: “Não são uma minoria. 30% do clero, dos bispos e dos leigos mais comprometidos no mundo estão contra Francisco. Há uma parte da Igreja que não está de acordo com Francisco e que está já a tratar de influenciar o próximo conclave. Nunca houve tantos ataques contra um Papa.”
Com a presente pandemia, tomámos consciência de muitas realidades de que andávamos muito afastados. Uma delas é que precisamos de atender à natureza, aos ecossistemas, à biodiversidade, à “ecologia integral” de que fala Francisco, precisamos de viver com mais moderação, e a Igreja, concretamente, uma vez que tem de dar o exemplo, não pode continuar no luxo ou a utilizar símbolos, mesmo na liturgia, que não são senão sinais de poder e ostentação. Impõe-se viver com simplicidade, segundo o estilo de Jesus. Nesse sentido e para dar um exemplo apenas, a irmã Mercedes Loring, de 95 anos, religiosa da Assunção, sugeriu: “Seria possível pedir ao Papa que acabe com as mitras dos bispos, inúteis, e que dão a impressão de ‘alta categoria’? Fico mal humorada, quando vejo uma cerimónia religiosa, sobretudo a Eucaristia, e o bispo com mitra. Ou quando vejo um grupo de bispos, todos com as suas mitras! Não consigo imaginar Jesus com essas pretensões.”
Já depois de este pedido se ter tornado viral, a irmã Mercedes Loring, que dedicou a sua vida à promoção dos pobres, voltou à carga, em diálogo com José Manuel Vidal, director de Religión Digital: “As mitras episcopais sempre me pareceram ridículas. Agora, com o confinamento, participei em muitas Missas pela internet, algumas presididas por bispos, todos eles com a mitra. E o antigo mal-estar voltou. Aquele tira e põe da mitra parece-me ridículo.” Acrescentou: “Se pudesse realizar o sonho de ver o Papa, dir-lhe-ia que acabasse com a mitra para ele e também para os bispos.”
É claro que Francisco não vai satisfazer o pedido da irmã Mercedes, pois não pode arranjar mais um problema, ele que já tem tantos. Há pouco tempo, encontrou o Padre Ángel, um exemplo notabilíssimo de cuidador atento e eficiente dos mais pobres e frágeis. O Papa perguntou-lhe: “Como estás, Ángel?” Resposta: “Vou indo, com os meus problemas.” “E tu?” Francisco: “Os meus problemas? Nem te falo...”.
De qualquer forma, fica aí o eco do pedido da irmã Mercedes, com 95 anos. Para exemplo, um extracto de um poema do célebre bispo-poeta Pedro Casaldáliga, também ele nonagenário (92 anos): “A tua MITRA será um chapéu de palha sertanejo. / O teu BÁCULO será a verdade do Evangelho/ e a confiança do teu povo em ti. / O teu ANEL será a fidelidade à Nova Aliança do Deus Libertador/ e a fidelidade ao povo desta terra. / Não terás outro ESCUDO/ para lá da Esperança/ e da liberdade dos filhos de Deus.”
3. Há muito pouco tempo, telefonei ao bispo de Bragança-Miranda, José Cordeiro. Para lhe manifestar a minha total simpatia. Porque vi no JN uma reportagem da jornalista Glória Lopes sobre ele, vestido normalmente e, como se impõe, com a máscara, a distribuir nas ruas alimentos e remédios a quem necessita. Leva também, e talvez seja por vezes o mais importante e necessário, palavras de conforto, “uma carícia de Deus”, como ele diz, neste tempo de pandemia, quando as pessoas se sentem mais sós e tristes. Fá-lo duas vezes por semana, indo ao encontro não só de pessoas mais velhas, mas também de migrantes e alunos estrangeiros do Instituto Politécnico de Bragança. “Eu senti o dever de acompanhar o trabalho da Cáritas Diocesana como um sinal em toda a Diocese, pois não posso acompanhar todas as instituições. Esta crise sanitária transformou-se rapidamente numa crise económica e social”, sublinhando que “não se trata de caridadezinha, mas de um amor em saída (aqui, lembro que Francisco não se cansa de repetir que quer “uma Igreja em saída”), para sermos solidários e de ir para o terreno “para estar junto das pessoas e dizer-lhes que não podemos ter medo”.
Estou convencido de que o bispo de Bragança não é caso único. Mas é um excelente exemplo da Igreja em saída, que olha para o Céu, com os pés assentes na Terra, distribuindo “carícias de Deus”. Para que se concretize um mundo melhor.
in DN, 24.5.2020

Comentários

  1. É reconfortante saber que, afinal, há muitos membros da igreja que advogam a simplicidade, procurando ir ao encontro do legado de Jesus.
    Gosto muito de Anselmo Borges.

    Abraço

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  2. Este Papa tem feito tudo para alterar comportamentos, vicíos, visões de uma igreja que está decadente. Mas e as visões, posturas e interesses dos que estão do lado oposto?
    Mexer em determinados aspectos, religiosos, económicos, etc., etc., é quase uma missão impossível, porque as resistência s são imensas.
    A questão da mitra pode ser simbólica, apenas e só. Então que dizer de todos os outros paramentos? Se todos os problemas da igreja fossem esses estava o povo de Deus bem.

    Beijinho, Família.

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