CELEBRAR O NATAL PARA QUÊ? (Frei Bento Domingues, O.P. Público 20DEZ2015)
1. Se Jesus existiu como realidade histórica – e raros são os que se atrevem a negar - é normal que tenha nascido. Quem reconhecer nele a condição humana no seu ponto mais belo, luminoso e humilhado, é justo que celebre este acontecimento.
As datas e os lugares elaborados para as festas, os cenários, as lendas e os mitos compostos pelas narrativas de S. Mateus e de S. Lucas (sem contar com os apócrifos) reflectem perspectivas teológicas e messiânicas diferentes. Nesses exercícios de antecipação para a infância da missão que apenas se manifestou na vida adulta de Jesus, os seus autores serviram-se dos materiais da cultura ambiente para reconfigurarem uma convicção: com Jesus, o evangelho da paz e da alegria de Deus incarnou na fragilidade humana. A salvação não está na fuga do mundo, mas na sua transformação, a partir das periferias mais condenadas. Como sempre, nas narrativas do Novo Testamento parece que tudo já estava previsto no Antigo, mas é sempre para introduzir o imprevisível.
Procurar em textos poéticos, lições positivistas de história, geografia ou biologia- “antes do parto, durante o parto e depois do parto” – apresenta-se como uma piedosa invenção para dizer que Jesus é sempre alguém completamente fora de série, na mais precária das situações. Os músicos, os poetas e os pintores da cultura popular e erudita não se enganaram quando deram asas à sua criatividade para fazer ouvir sons futuros de uma humanidade liberta.
Hoje, num clima cultural dominado pelo prestígio da ciência e da técnica, o recurso à crença em milagres, está reservado para os momentos de extrema aflição. Fazer de Deus um tapa buracos das insuficiências humanas é uma das formas mais frequentes de facilitar o caminho ao ateísmo. A fé na presença divina no nosso quotidiano tem itinerários muito diferentes de pessoa para pessoa. As receitas para cozinhar a vida espiritual tornam a comida sem graça. Como respiração da vida e iluminação da nossa noite só pode ser acolhida pelo silêncio intenso e acordada pela grande música: silêncio que cante e música que nos deixe sem palavras. A ponte para o divino exige a transfiguração do nosso olhar e da nossa escuta. A mediocridade é a receita fatal.
2. Acreditar nos credos é uma idolatria. O dominicano S. Tomás de Aquino, um filósofo, um biblista, um teólogo e um poeta medieval, insistiu em algo essencial e libertador: o terminal do acto de fé não são os “artigos da fé” – estes são apenas mediações - mas a inabarcável realidade de Deus. Para não se cair no fideísmo, a fé não pode saltar por cima da inteligência, nem renegar o seu exercício. Não pode haver assentimento à proposta da fé teologal sem ver nela uma perfeita expansão e superação da inteligência. A simbólica da fé ou dá que pensar e transformar ou aliena. Quem se fixa no dedo que aponta o céu e a urgência da terra, perde o céu e a terra.
O exercício da razão é tão importante que o citado teólogo se atreveu a escrever o seguinte: embora acreditar em Cristo seja, por si mesmo, bom e necessário à salvação, pode, acidentalmente, transformar-se num mal: se alguém, em consciência, pensa que Ele é um mal, peca se o confessar como um bem. No entanto, importa lembrar a paradoxal declaração de I. Kant, no prefácio à primeira edição da Crítica da Razão Pura: ”A razão humana tem este destino singular, num género dos seus conhecimentos, de ser dominada por questões que não pode evitar, pois são-lhe impostas pela sua própria natureza, mas às quais não pode responder porque ultrapassam totalmente o poder da razão humana”.
3. Situar Jesus na lista das grandes personalidades do passado é uma questão de memória cultural e nenhuma se lhe pode comparar. Não deixou nada escrito, mas a sua própria existência é o mais belo e imortal poema de amor. Se há modelo de vida verdadeira, não é preciso ir mais longe, mas ninguém pode dizer que é o herdeiro exclusivo das suas palavras, dos seus gestos. Deu origem a várias narrativas e interpretações. Deixou tudo em aberto. O próprio autor do 4º Evangelho tem a humildade de ser exagerado: (…) Há, porém, muitas coisas que Jesus fez e que, se fossem escritas uma por uma, o mundo não poderia conter os livros que se escreveriam.
Existem várias e boas razões para celebrar o Natal. Em muitos casos é a festa da família e este é um dos seus melhores frutos. Se contribuir para refazer ou fortalecer os laços familiares, a Sagrada Família torna-se muito numerosa: fazer família com quem não é da família é continuar a revolução de Jesus de Nazaré, do mundo todo.
Bom Natal.
Já tinha lido e achei um texto muito teólogo e é pena que assim seja porque a mensagem está lá...mas não chega a todos.
ResponderEliminarFrei Bento tem uma maneira de escrever mais complexa do que Anselmo Borges, Fatyly
EliminarO meu amigo hoje trás aqui dois grandes vultos da cultura portuguesa dois grandes teólogos.
ResponderEliminarUm abraço e BOAS FESTAS.
Duas presenças habituais, Francisco.
EliminarAquele abraço, votos de um Santo Natal
Festas Felizes, Pedro!
ResponderEliminarBeijinhos. :)
Votos de um Santo Natal, Maria Eu
EliminarBeijinhos
Já conhecia o texto deste homem bom. De facto, há "coisas" inquestionáveis!
ResponderEliminarSanto Natal e Esperançoso Ano Novo para o Pedro, mulher, amadas filhas e restante família.
Beijinhos para todos e muita saúde, Pedro!
Frei Bento e Anselmo Borges são presenças constantes e obrigatórias, CÉU.
EliminarVotos de um Santo Natal para si e aqueles que lhe são mais queridos
Beijinhos
Um Santo e Feliz Natal. Acho o Frei Bento Domingos pouco simples na sua escrita.
ResponderEliminarTem uma escrita mais elaborada se comparado com Anselmo Borges, por exemplo, Maria do Mundo
EliminarUma leitura exigente para se chegar ao ponto. As palavras de grande erudição de BD não são fáceis de entender e de aceitar e contrastam com a origem e natureza do homem simples que é
ResponderEliminarAbraço .
Mais complexo na sua escrita, Frei Bento é também presença obrigatória neste espaço, Agostinho
EliminarGrande abraço