10 perguntas para o pós-covid-19


NÃO PODEREMOS VOLTAR À ETAPA PRECEDENTE, COMO SE ESTA EXPERIÊNCIA TRAUMÁTICA TIVESSE SIDO UMA INTERRUPÇÃO, MAS TAMBÉM NÃO SABEMOS BEM AQUILO EM QUE NOS TORNAREMOS, COMO INDIVÍDUOS E COMUNIDADES
A coragem destas horas não se joga apenas na primeira frente de combate à pandemia, mas também na resiliência e ousadia necessárias para pensar no que seremos no pós-covid-19. Para já, torna-se claro que não poderemos simplesmente voltar à etapa precedente, como se esta experiência traumática tivesse apenas sido uma interrupção, mas também não sabemos bem aquilo em que nos tornaremos, como indivíduos e comunidades. E se esta talvez seja a provação mais dura, é também a mais desafiante: o confronto com uma nova realidade que tem de começar, e ter de o fazer não numa zona de certezas como gostaríamos, mas ainda num instável território de transição, que se prolongará. Por isso, é importante que nos coloquemos perguntas, as mais díspares, as que têm emergido na corrente destes dias e outras ainda, e que as debatamos.
1O processo gerado pelo vírus acelerará apenas as assimetrias e os egoísmos do velho mundo ou motivou-nos a compreender que estamos no mesmo barco e que só há futuro na cooperação e na implementação de outros modelos de existência coletiva?
2Quando as portas das nossas casas se reabrirem, sairemos pesados e a medo, incapazes de vencer a distância que nos separa dos outros ou vamo-nos abraçar como irmãos reencontrados? Perderemos ou não a espontaneidade? Finalmente ultrapassaremos a paranoia do outro como rival, estranho e inimigo para pensá-lo como semelhante e aliado?
3Quando reabrirmos as fronteiras passaremos, de facto, para uma nova etapa da globalização, mais conscientes dos riscos que ela comporta (pandemias, danos ambientais, mutações climáticas, precarização do trabalho e exclusão) e também mais capazes de construir uma nova ordem social e planetária assente na justiça?

É importante que nos coloquemos perguntas, as mais díspares, as que têm emergido na corrente destes dias e outras ainda, e que as debatamos

4Deixaremos de considerar a terra um objeto para ser ilimitadamente explorado, segundo os nossos interesses, ou vingará a ideia de que a terra e o cosmos sejam considerados, pelo direito internacional, como sistemas vivos, com o seu equilíbrio e as suas regras?
5Compreenderemos finalmente que está tudo interligado, como insistiu o Papa Francisco na encíclica “Laudato Si”: o grito da terra e o grito dos pobres, a situação sub-humana a que estão condenadas multidões de seres humanos e a fragilidade ignorada do planeta?
6Ainda fará sentido a previsão que decretava o fim da alimentação cozinhada em casa, pois todos nos tornaríamos clientes de uma app de food delivery? Ou reencontraremos outros ritmos que não os da ditadura da vida frenética (aprendendo a desacelerar) e outros sabores que nutram também a alma (reaprendendo a cultivar a nossa humanidade)?
7A União Europeia terminará, como um monumental museu de boas intenções que se afunda, ou esta será precisamente a estação do seu relançamento?
8Saberemos construir alternativas à massificação e reinventar uma escala mais humana para a convivência, para a arquitetura das nossas cidades e para a qualidade das nossas relações?
9Saberemos cuidar dos médicos, enfermeiros e cuidadores que tiveram a experiência direta deste trauma? Rapidamente preferimos declará-los como heróis, e são, mas são também seres humanos vulneráveis como nós, que tiveram de esgotar os seus recursos para enfrentar a dor, o medo e a solidão dos pacientes, muitas vezes em estruturas inadequadas e tendo de operar com meios insuficientes. A compaixão e o cuidado deixam, não raro, uma fadiga interna, que tem de ser tratada. Como o faremos?
10Triunfará uma visão mais integradora da vida, que compreenda a importância de valores como o dom, a gratuidade e a partilha, e nos capacite, por exemplo, para uma síntese mais equilibrada entre pessoa e comunidade, entre vida material e vida espiritual?
in Semanário Expresso 18.04.2020 p 164
http://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2477/html/revista-e/que-coisa-sao-as-nuvens/10-perguntas-para-o-pos-covid-19-

Comentários

  1. Estão lindamente formuladas, as perguntas de Tolentino. Mas duvido que existam na mente da maioria das pessoas. Porque não são pensadores; porque a vida lhes apresenta coisas mais premente como, vou perder o emprego, até quando poderei pagar as prestações e honrar os meus compromissos. Afinal somos diariamente pressionados a não pensar e a reflexão é o que não se pretende. Que opinemos, isso sim, mas com pouca profundidade, a opinião é entretenimento popular.
    E talvez o cardeal coloque as questões pensando nos chefes da claque humana, dirigentes com responsabilidade humana, necessariamente ecológica. O mundo humano é em certa medida, um fogo fátuo, está cheio de palavras. Mais nada. Tudo o resto é escasso. Até as boas intenções que, como se sabe, podem não passar disso.

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    1. Pós-covid, bea.
      Primeiro vamos debelar a pandemia, depois tentar melhorar enquanto seres humanos.

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