Para onde vamos? (Padre Vítor Gonçalves)


São de paixão as repetidas notícias de violência em contexto familiar, a que se dá o nome de “violência doméstica”. Explosões de muitas violências caladas e amordaçadas por medo e opressão, injustificáveis e desumanas, onde a lei do mais forte fere e mata os mais fracos, na maioria dos casos, crianças e mulheres. É a continuada Paixão de Cristo que tanto se identificou com os mais pequeninos, onde a indiferença de muitos e os preconceitos de outros continuam a permitir calvários!
É com extrema violência que uma mulher, apanhada em adultério, é levada por escribas e fariseus até Jesus. Sozinha, no meio dos presentes, transformada em objecto, qual rato de laboratório, corre risco de vida, e nem aquele mestre parece ter poder para evitar o peso da Lei. Jesus, sentado como mestre que ensina, recusa o debate de ideias. Quantos mortos causaram na história da humanidade os debates de ideias? Inclina-se a escrever com o dedo no chão, e ao longo dos tempos muitos perguntarão que palavras teria escrito. Só uma outra passagem da Escritura fala de alguém que escreve com o dedo: Deus, nas tábuas da lei que entregou a Moisés no Sinais (Ex. 31, 18). Perante a insistência dos acusadores, Jesus levanta-se e interpela cada um ao reflexo da própria vida. Ninguém é superior a outro, a ninguém pode ser dado o poder de tirar a vida, e muito menos, usar o nome de Deus para se desresponsabilizar.
Não os confrontando com o seu olhar, Jesus inclina-se de novo e volta a escrever no chão. Acabam por ficar só Ele e a mulher. Agora, sim, há um olhar e um diálogo. Foi importante a pergunta de Jesus, que a trata por “Mulher”, reconhecendo nela a humanidade e a dignidade a salvar, uma história que pode ter um novo rumo. Como foi importante a resposta dela: “Ninguém, Senhor!”, expectante de algo profundamente novo e recriador que Jesus pode fazer. E como para Deus, mais importante do que “de onde vimos” é “para onde vamos”, as palavras de Jesus abrem um futuro novo e luminoso. Não é posta em causa a ferida que trazia, mas não se cura a doença com a morte do doente e sim com o remédio que traz saúde. Uma Lei, uma religião, uma ideia que leva à morte de quem falha, esquece o essencial da encarnação: estamos a caminho, e Deus nunca desiste de ninguém!
Quando deixamos de nos olhar bem no fundo dos olhos uns dos outros, quando legalismos e preceitos se tornam mais importantes do que a história de cada um, quando nos julgamos “mais” e “melhores” que outros e caímos na armadilha das comparações, diminuímos em humanidade. Não adianta “envernizar” o que é desumano com camadas de religiosidade ou preconceitos que aprisionam: se não há “caminho para andar” com outros (como canta o Jorge Palma), naquilo que digo e que faço, posso até achar-me muito certo e poderoso, mas estou mais morto que vivo! Para onde vamos?

in Voz da Verdade, 07.04.2019

Comentários

  1. powerful piece of writing dear Pedro!

    i believe that God has not given right to take life of anyone

    here is a saying that

    COME FORWARD AND HIT THE SINNER WITH STONE

    BUT

    MAKE SURE THAT YOU HAVE NOT COMMITTED SIN EVER AND ARE PURE ENOUGH TO PUNISH

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    1. God, which ever religion, GIVES life, doesn't take it away, baili

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  2. Bom dia
    Este post está relacionado com o evangelho deste fim de semana . E como este muitos outros deveriam ser mais partilhados , para que pudéssemos dizer :
    Quem sou eu para atirar a primeira pedra ?
    Não me vou alongar , pois sei que é matéria para muita reação , mas esta é simplesmente a minha opinião .
    JAFR

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    1. Mas é essa mesmo a reflexão que se pretende, Joaquim Rosário.
      Antes de criticarmos, de julgarmos, fazer um juízo de introspecção.
      Também é assim no outro post.

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  3. O Evangelho está cheio de grandes ensinamentos que tornariam a humanidade mais feliz se fossem seguidos.
    E Samar Badawi não teria sido decapitada como exemplo em público pelo crime de defender os direitos da mulher.
    Abraço

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    1. Gente simplesmente bárbara, Elvira Carvalho.
      Seres desprezíveis que nunca evoluíram no seu humanismo.

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  4. EXCELENTE!
    Para ler e reflectir.
    "Quando deixamos de nos olhar bem no fundo dos olhos uns dos outros, quando legalismos e preceitos se tornam mais importantes do que a história de cada um, quando nos julgamos “mais” e “melhores” que outros e caímos na armadilha das comparações, diminuímos em humanidade." - vou levar para o meu "Pétalas de Sabedoria". Não te importas, pois não?!
    Beijo.

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  5. a religião tem ensinamentos muito sábios, Pedro
    para que se possa viver em comunidade e em paz,
    muitos trabalham para destruir essas leis de vivências pacíficas

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    1. As interpretações distorcidas e convenientes, Angela.
      São essas que estragam o que seriam mensagens de paz.

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  6. Pedro vou ser sincera, como sempre, não gosto de padres nem acredito em qualquer religião. Mulheres vitimas de violência doméstica, um crime estupido, para não dizer pior é claro.
    Esta frase fez-me pensar : a ninguém pode ser dado o poder de tirar a vida. No contexto de violência doméstica não com toda a certeza, mas e noutros casos? de pedofilia por exp? sei que o texto não é sobre isso, mas olha que faz pensar.
    Boa quarta.

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    1. Pena de morte, nunca, Mena Almeisda.
      Já a castração química para pedófilos...

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  7. Para er, reler e refletir

    "Não adianta “envernizar” o que é desumano com camadas de religiosidade ou preconceitos que aprisionam: se não há “caminho para andar” com outros (como canta o Jorge Palma), naquilo que digo e que faço, posso até achar-me muito certo e poderoso, mas estou mais morto que vivo! Para onde vamos?"
    Dificl explicar.

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    1. A violência doméstica é aberrante, Diná.
      Sem mais.
      Aberrante, ponto final.

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