Francisco: um quase-testamento (2) (Por Anselmo Borges DN 10.03.2017)


1 - Para o Papa Francisco, a definição de Deus é misericórdia, mas sem uma concepção delicodoce, pois a misericórdia é exigente. Avisa que é preciso ser coerente; não se pode ter uma vida dupla: "Sou muito católico, vou sempre à missa, mas não pago o justo aos meus funcionários, exploro as pessoas, faço jogo sujo nos negócios... É daí que vem ouvirmos tantas vezes: "ser católico como aquele?, é melhor ser ateu"."
Na frente do seu combate está a idolatria do dinheiro, como aconteceu com Jesus: o dinheiro transformado em ídolo absoluto é incompatível com a fé no Deus da Vida: "Não podeis servir a Deus e ao dinheiro." Por isso, diz "não" a uma economia da exclusão e da iniquidade. "Essa economia mata"; vivemos "na ditadura de uma economia sem rosto e sem objectivos verdadeiramente humanos"; "a cultura do bem-estar anestesia--nos"; acusado de comunista, responde: "esta mensagem não é marxismo, mas Evangelho puro."
2 - Foi assim que, continuando com a entrevista ao El País, respondeu: "Eu não estou a fazer nenhuma revolução. Estou apenas a tentar que o Evangelho prossiga, vá por diante. Eu procuro, não sei se consigo, fazer o que o Evangelho manda. Sou pecador e nem sempre consigo, mas é isso que procuro. É curioso: a história da Igreja não a levaram por diante os teólogos, os padres, os bispos... sim, em parte sim, mas os verdadeiros protagonistas da história da Igreja são os santos, isto é, aqueles que se sacrificaram para que o Evangelho se tornasse concreto: as pessoas que vivem do seu trabalho com dignidade, que criam os filhos, enterram os seus mortos, cuidam dos avós, essa é a nossa classe média, os enfermeiros, os cuidadores. O ponto fixo é o concreto. Do ponto de vista económico, hoje a classe média tende a desaparecer, cada vez mais, e pode-se correr o risco de refugiar-se nas cavernas ideológicas. Mas esta é a "classe média de santidade": o pai, a mãe, que celebram a sua família, com os seus pecados e as suas virtudes, o avô, a avó. A família."
Como deve ser a Igreja? "Que não deixe de ser próxima. Que procure ser continuamente próxima das pessoas. Uma Igreja que não é próxima pode ser uma boa ONG, mas não é Igreja."
Preocupações? "A minha preocupação é a guerra. Estamos na Terceira Guerra Mundial em pedacinhos. E, ultimamente, já se fala de uma possível guerra nuclear, como se fosse um jogo de cartas. É isso que mais me preocupa. E preocupa-me a desproporção económica: que um pequeno grupo tenha mais de 80% da riqueza, que no centro do sistema económico esteja o deus dinheiro e não o homem e a mulher, o humano. Então cria-se a cultura do descarte."
Sobre a corrupção. "É um grande pecado. Mas julgo que não devemos atribuir-nos o exclusivo. A corrupção existiu sempre. Sempre. Aqui. Se se ler a história dos papas, deparamos com cada escândalo!... Tenho vários exemplos de países próximos onde houve corrupção na história, mas fico-me pelos meus. Basta pensar no papa Alexandre VI, e dona Lucrécia..." "Na Cúria, há gente corrupta. Mas muitos santos também."
Quanto aos refugiados, os governos estão à altura? "Cada um faz o que pode e o que quer. É muito difícil fazer um juízo. Mas, claro, que o Mediterrâneo se tenha tornado um cemitério tem de nos fazer pensar."
É um Papa incómodo? "Não, não. Eu julgo que, atendendo aos meus pecados, deveria ser mais incompreendido. O mártir da incompreensão foi Paulo VI. Eu não me sinto incompreendido. Sinto-me acompanhado, e acompanhado por todo o tipo de gente, jovens, velhos... Sim, alguns por aí não estão de acordo, e têm esse direito, porque, se eu me sentisse mal por alguém não estar de acordo, haveria na minha atitude um gérmen de ditador. Têm direito a não estar de acordo, direito a pensar que o caminho é perigoso, que pode dar maus resultados, que... têm direito. Mas que dialoguem sempre, que não atirem a pedra e escondam a mão. Isso não. A isso ninguém tem direito. Atirar a pedra e esconder a mão não é humano, isso é delinquência."
Sobre a diplomacia do Vaticano. "Eu peço ao Senhor a graça de não tomar nenhuma medida por causa da imagem. Que seja por honestidade, por serviço, esses são os critérios. A diplomacia vaticana tem que ser mediadora, não intermediária. Sim, ao longo da história, a diplomacia vaticana fez manobras ou encontros e encheu o bolso: aí cometeu um pecado gravíssimo. O mediador faz pontes que não são para ele, mas para que os outros caminhem. E não cobra portagem. Fez a ponte e vai-se. Para mim, essa deve ser a imagem da diplomacia vaticana: mediadores e não intermediários. Construtores de pontes."
Que se pede e exige na política? "Diálogo. É o conselho que dou a qualquer país. Por favor, diálogo. Hoje, com o desenvolvimento que há, não se pode conceber uma política sem diálogo."
Sobre o tráfico de mulheres. "Há em toda a parte. Na Europa... A situação dessas mulheres é de terror. Na casa que visitei, havia uma a quem tinham cortado uma orelha..." Na Igreja, é preciso ir mais longe quanto ao papel das mulheres.
"A teologia da libertação foi uma coisa positiva na América Latina. Foi condenada a parte que optou pela análise marxista da realidade." E advertiu para os perigos dos movimentos populistas.
Vai à China? "Quando me convidarem. São eles que sabem."
Nos seus consistórios, criou cardeais dos cinco continentes. "Como gostaria que fosse o conclave que elegerá o seu sucessor?" Resposta: "Que seja católico. Um conclave católico que escolha o meu sucessor." Vai vê-lo? "Isso não sei. Que Deus decida. Quando sentir que não posso mais, foi o meu mestre, o papa Bento XVI, que me ensinou como devo fazer. E se Deus me levar antes, vê-lo-ei do outro lado. Espero que não seja a partir do inferno... Mas que seja um conclave católico."

Comentários

  1. Cada dia que passa admiro mais o Papa Francisco. Se a história da Igreja tivesse tido muitos assim, talvez o mundo estivesse melhor.
    Um abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Comungo inteiramente do seu sentimento, Elvira Carvalho.
      Mas ambos sabemos que entre os sectores mais tradicionais da Igreja Francisco é quase comparo ao Demo.
      O que me faz temer seriamente pelo pós-Francisco.
      Um abraço

      Eliminar
  2. Francisco quer cumprir o Evangelho, simplesmente se Jesus tivesse a peregrina ideia de ir até ao Vaticano seria empalado na coluna da praça de Pedro.... SEndo assim imagine-se o que lhe acontece e , enfim, tem um seguro de vida chamado Albino Luciani....só não sei por quanto tempo

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. A mim preocupa-me sobretudo o que se seguirá a Francisco, São.
      Tenho receio, confesso.

      Eliminar
  3. O Papa Bento XVI também foi o meu mestre, não nas coisas de Deus. Foi sim, o meu mestre ao ler os seus livros tremendamente filosóficos.

    O Papa Francisco nunca me aqueceu.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Bento XVI e Francisco são dois homens muito diferentes, ematejoca.
      No carácter, na visão ecuménica.
      Francisco é o ser humano que mais admiro na actualidade, como já aqui referi várias vezes.

      Eliminar
  4. "Eu não estou a fazer nenhuma revolução. Estou apenas a tentar que o Evangelho prossiga, vá por diante. Eu procuro, não sei se consigo, fazer o que o Evangelho manda. Sou pecador e nem sempre consigo, mas é isso que procuro."

    Um homem superior, Pedro, estamos perante um homem superior.

    Aquele abraço.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Como muitas pedras no caminho, Ricardo.
      Não está a ter uma tarefa nada fácil.
      Aquele abraço

      Eliminar
  5. Como sabe, sou leitor atento das crónicas do Anselmo Borges

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Anselmo Borges e Frei Bento, Carlos.
      Merecem ser lidos, acompanhados, compreendidos.

      Eliminar
  6. Pois, Pedro, como já aqui tenho escrito, não me pronuncio sobre este papa, k teve como "mestre", em alguns aspetos, Bento XVI, como ele próprio afirma. Contudo, Deus conhece todos os corações.

    Beijinho.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Como já aqui referi na respostas à ematejoca (até lhe chamei ematejoca e não Teresa para nos situar melhor) Francisco e Bento XVI são pessoas muito diferentes.
      Acompanho muito mais a visão da Igreja e a visão ecuménica de Francisco do que de Bento XVI.
      Beijinhos

      Eliminar
    2. Claro que são, Pedro! Bento XVI, conhecido pelo Rottweiller, teve um pontificado fechado, virado para dentro, pra sapatos de pel, manufaturados e roupas de linhagem, mas não me cabe classificar, rotular o coração dele. Isso é "tarefa" de Deus. Posso, no entanto, acrescentar que, desde k tenho consciência do k é termos, mundo católico, um Papa, Bento XVI foi o que menos me agradou.

      Eu tb me identifico com tudo o que/quem seja ternura, compreensão, afabilidade, sensibilidade, etc., mas mtas vezes, essas atitudes não são assim tão verdadeiras quanto isso. O futuro o dirá!

      Eliminar
    3. Francisco é autêntico, CÉU.
      Aquela bonomia, aquela bondade, aquela simplicidade, não são estudadas, não são teatro.
      É genuíno, real, humano.

      Eliminar
  7. Lendo as respostas do Pedro, sugiro k não deva preocupar-se com a época pós Francisco, pke o tempo é, aparentemente, de afetos.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Se assim for até é bom, CÉU. um pouco de paz e de afecto não faz mal a ninguém.
      Já a constante violência, física ou verbal, é má para todos.

      Eliminar
  8. Aprecio muito estas crónicas...
    O papa sabe que se há vozes que se levantam contra as suas decisões, a maior parte dos fiéis está com ele.
    Que Deus o proteja e conserve, assim como ao Padre Anselmo.
    Beijinhos.
    ~~~~~

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Duas figuras superiores, cada um à sua maneira, Majo.
      Que curiosamente os sectores mais conservadores da Igreja detestam.
      Beijinhos

      Eliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares