É em Sábado que vivemos por ANSELMO BORGES Diário de Notícias 04ABR2015


1. Ele há daquelas coisas contraditórias e perturbadoras que envenenam e arruínam a vida. Aqui, estou a referir-me ao que ao longo da história se fez de Deus. E nem sequer estou a pensar no "deus" do autoproclamado Estado Islâmico, em nome do qual se mata, decapita, degola, viola, se enterra gente viva. Penso no que se fez ao Deus de Jesus, quando foi transformado num deus sádico. Como foi possível?
Arranjou-se um pecado dos primeiros pais, Adão e Eva, pobres criaturas que, com o seu pecado original, foram os causadores de todo o mal do mundo. Esse pecado constituiu uma ofensa infinita a Deus, que só por um acto de valor infinito podia ser reparada. Por isso, Deus mandou ao mundo o seu Filho para que, pela morte na Cruz, pagasse a dívida infinita da humanidade para com Ele e, assim, fosse aplacado na sua ira e se reconciliasse com a humanidade resgatada.
Evidentemente, um Deus assim seria pior do que nós, pois nenhum pai humano são exigiria a morte de um filho para reconciliar-se com os outros filhos. Esta doutrina, que tolheu de medo a vida de muitos e faria de nós também vingativos, masoquistas e sádicos, é contraditória com a única tentativa de "definir" Deus no Novo Testamento, na Primeira Carta de São João: "Deus é amor incondicional."
Jesus fez uma experiência avassaladora de Deus cujo ser é amor libertador. O seu único interesse, ao criar, são pessoas livres, plenamente realizadas e felizes. Jesus viveu a sua vida totalmente enraizado neste Deus que quer a vida em plenitude para todos, agindo em consequência: pregou o Reino de Deus por palavras e obras, aquele Reino onde Deus reina e não há opressores nem oprimidos, o Reino da inclusão, Reino para os pobres, humilhados, marginalizados, os das periferias geográficas e existenciais, como repete o Papa Francisco.
Era claro para Jesus que este anúncio e actuação poderiam terminar na sua condenação e numa morte violenta. Porque há aqueles que são de outro reino - o da exploração religiosa, económica, social, política - e o viam abalado. Jesus poderia ter "negociado" a sua mensagem, evitando perigos e ameaças. Mas não o fez. Foi até ao fim. Para dar testemunho da verdade e do amor: Deus é amor para com todos.
Foi condenado pela religião oficial como blasfemo e pelo poder imperial como subversivo social e político. Não por Deus. Porque Deus não quer a dor e o sofrimento, mas a alegria. Deus não precisa de sacrifícios nem de vítimas. Jesus foi vítima, porque Deus não quer vítimas. Entregou a sua vida por amor e foi crucificado, porque Deus não quer crucificados. "Deus é amor incondicional": este é o verdadeiro letreiro que encima a Cruz de Cristo.
Aparentemente, no horror daquela Sexta-Feira Santa, foi o fim. Mas, lentamente, reflectindo sobre a experiência que Jesus fez de Deus, sobre o modo como viveu, como agiu, como morreu, os discípulos fizeram a experiência avassaladora de que o Deus-amor, a quem Jesus se dirigia como Abbá, Pai--Mãe querido, não o abandonou nem sequer na morte. Jesus não morreu para o nada, mas para Deus. Na morte, não encontrou o nada, mas a plenitude da vida de Deus.
Esta é a mensagem de Páscoa, que os discípulos, outra vez reunidos, foram anunciar pelo mundo, e por ela deram a vida. E chegou até nós, cuja vida se passa em Sábado, entre a dor de Sexta--Feira Santa e a esperança do Domingo de Páscoa.
2. Sobre este tema, escreveu G. Steiner um texto poderosíssimo, que já uma vez aqui citei: "Sabemos que a Sexta-Feira Santa do cristianismo é a da Cruz. Mas o não cristão, o ateu, também a conhece. Significa que ele conhece a injustiça, o sofrimento interminável, a devastação, o brutal enigma do fim, que em grande medida constituem não só a dimensão histórica da condição humana, mas também o tecido quotidiano das nossas vidas provadas. Conhecemos, inevitavelmente, a dor, a falência do amor e a solidão que são a nossa história e o nosso destino pessoal. Também conhecemos o Domingo. Para o cristão, esse dia é o sinal, simultaneamente garantido e precário, de uma justiça e de um amor que venceram a morte. Se não somos cristãos ou se somos descrentes, conhecemos esse Domingo precisamente nos mesmos termos. Para nós, é o dia da libertação da inumanidade e servidão. Esperamos soluções, sejam elas terapêuticas ou políticas, sociais ou messiânicas. Os contornos desse Domingo carregam o nome da esperança (não há palavra menos susceptível de desconstrução). Mas a nossa longa jornada é a de Sábado. Entre o sofrimento, a solidão e o indizível desperdício, por um lado, e o sonho da libertação e do renascimento, por outro. Em face da tortura de uma criança ou da morte do amor que é Sexta-Feira, até a arte e a poesia mais sublimes se revelam vãs." Sim. É no Sábado Santo que os cristãos e, de certo modo, todos os seres humanos vivemos.

Comentários

  1. Respostas
    1. Como é norma com o grande e incomparável Anselmo Borges.
      Que espero conhecer pessoalmente numa próxima visita a Coimbra.

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  2. Impressionante. Nunca tinha pensado nisto. Para ler e meditar.
    Um abraço

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    1. Anselmo Borges partilha uma visão desempoeirada da Igreja com homens como Francisco, Elvira Carvalho.
      Presença assídua aqui no blogue, espero realmente vir a conhecê-lo pessoalmente.
      Um abraço

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  3. Como o Pedro já sabe, leio sempre as crónicas de Anselmo Borges que proporcionam excelentes momentos de reflexão.

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    1. Espero conhecê-lo pessoalmente numa próxima visita a Coimbra, Carlos.
      O meu pai é fã e amigo dele.
      Eu, por enquanto, sou só fã.

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  4. Fantástico esse texto! Se analisarmos bem com certeza é bem verdade sobre o Sábado.
    Bjs Pedro!

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    1. Anselmo Borges tem este dom de nos fazer pensar com aquilo que escreve, Smareis.
      Bjs

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  5. é um texto bastante bonito Pedro :)
    a transposição da mensagem para a vida humana que tem conhecimento das suas limitações

    Angela

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  6. ~ ~ ~ Não é fácil entender...

    ~ Ele é...
    ~~~~~~Omnisciente....
    ~~~~~~~~~Omnipotente...
    ~~~~~~~~~~~~Omnipresente...

    ~ ~ É preciso ter Fé para crer. ~ ~

    ~ ~ ~ ~ ~ Beijinho amigo.~ ~ ~ ~ ~
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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    1. Mas a Fé não nos pode cegar e fazer perder a capacidade crítica e de raciocínio, Majo.
      Beijinhos

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