A pergunta decisiva (Tolentino Mendonça)


A FREQUÊNCIA COM QUE OS TERMOS CATÁSTROFE E TRAUMA APARECEM CITADOS TESTEMUNHA COMO O GRAU DE SOFRIMENTO COLETIVO CRESCEU. 
E, INFELIZMENTE, CONTINUARÁ A CRESCER.

O devastador impacto da covid-19 sobre as nossas sociedades tem sido colhido, tanto por peritos como na perceção popular, como uma catástrofe e um trauma. São palavras com um sentido preciso sobre o qual convém refletir. Uma catástrofe ocorre quando a maior parte ou a totalidade de uma comunidade é fortemente condicionada por uma disrupção inesperada: as rotinas ficam inviabilizadas, o conjunto da estrutura social estremece e a comunidade não consegue, com os recursos próprios, fazer frente às gravíssimas necessidades que emergem. Quanto ao trauma, pode ser útil recordar o que dizia Freud: um trauma é uma agressão que, por ser imprevisível, nos encontra sem defesas, e traz por arrasto a implosão violenta da nossa representação ordinária do mundo, confinando-nos a um incapacitante estado de angústia. A frequência com que os termos catástrofe e trauma aparecem citados testemunha como o grau de sofrimento coletivo cresceu. E, infelizmente, continuará a crescer, pois os danos provocados alteram a fisionomia da nossa existência comum. Porém, muitos se começam a interrogar, com razão, sobre como será o pós-covid-19.

Precisamos de resiliência para que, uma vez feridos, isso não nos retire completamente a confiança na vida, nem obstaculize para sempre a alegria de que somos herdeiros.

Nas ciências humanas, há dois axiomas esperançosos para o tempo de reconstrução que se reabrirá. O primeiro é o “axioma de Quarantelli”. Enrico Quarantelli (1924-2017) foi um importante sociólogo norte-americano, que se especializou no estudo de reação aos desastres. As suas conclusões sublinham que as catástrofes geram mais cooperação que conflito, avizinham as pessoas como nunca, democratizam a vida social e fortalecem a identidade comum. Há novas organizações (ad hoc ou mais estáveis) que se criam, reforçando a coesão da sociedade para uma resposta concreta e eticamente qualificada. O segundo é o “axioma de Cyrulnik”. Boris Cyrulnik é um neuropsiquiatra francês, de origem judaica, que viu os pais morrer em Auschwitz, e tem hoje uns belos 82 anos. A sua tese sobre o trauma é que ele, se não é certamente reversível, pode ser, no entanto, reparável. Tal implica não pretender regressar ao estado precedente, mas pacientemente passar para uma etapa nova. A ferramenta que Cyrulnik propõe é a resiliência, uma categoria que ele recupera da Física. Trata-se ali da capacidade de um metal resistir a choques sem se despedaçar. Também nós humanos precisamos de resiliência para que, uma vez feridos, isso não nos retire completamente a confiança na vida, nem obstaculize para sempre a alegria de que somos herdeiros.
Foi estes dias publicada, em Itália, a primeira sondagem sobre a espiritualidade em tempos de pandemia. Um primeiro dado verificável é que não aconteceu uma deserção dos crentes, que continuam nos 70%, nem os não crentes alteraram substancialmente o seu posicionamento, mantendo-se os 27% da população. Mas há uma curiosa pontuação em duas afirmações: naquela que defende que este é um tempo propício para sermos mais humanos e solidários; e naquela que afirma que a atual situação provoca, com maior intensidade, a que nos coloquemos a questão sobre o sentido da vida. Os axiomas de Quarantelli e de Cyrulnik são ajudas importantes no imediato, mas ainda têm a ver com as realidades penúltimas. A busca do sentido da vida pede, porém, que levemos o coração até àquela última. E essa é que representa para todo o ser humano a pergunta decisiva.
Os cristãos, em cada Páscoa, é isso que fazem: expõem-se à radical pergunta pelo sentido das suas vidas e da vida do mundo. E, no anúncio que as mulheres vêm fazer aos discípulos, de que o sepulcro de Jesus está vazio, tateiam uma verdade definitiva que resgata a vida e a morte. Pois, como explicou São João no Livro do Apocalipse (21:4-5), as coisas como eram anteriormente passaram: em Cristo Ressuscitado, Deus faz novas todas as coisas.
in Semanário Expresso, 11.04.2020 p. 171

Comentários

  1. Acontecimentos traumáticos como estes que estamos a viver sobrecarregam o nosso sistema nervoso, interferem na nossa capacidade de compreender o que realmente se está a passar e de como lidar com a situação. O isolamento pode provocar pânico, desespero, ansiedade, depressão e tantos outros problemas mentais que também são uma grande preocupação para os nossos profissionais de saúde.
    Muitos artigos e crónicas vão ser escritos sobre a fase pós-covid19.

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    1. Já aqui exprimi a minha séria reserva acerca da possibilidade de mudança de paradigma, Catarina.
      Vamos todos sair desta pandemia diferentes.
      Mas não acredito melhores.
      A ressurreição ainda vai ter que esperar.

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  2. Vamos todos sair diferentes desta pandemia mas não acredito que muitos sairão melhores porque a natureza humana é assim mesmo.
    Por exemplo os "reinantes" só poderão mudar um bocado se malharem com o corpo no olho do furacão...tal como o tal Boris que hoje o seu discurso virou...tal como a ovelha tresmalhada voltou ao rebanho.
    Temo duas coisas: o oportunismo dos mesmos de sempre e a saúde mental de quem está isolado sobretudo os velhos de ou num lar. Aqui incluo a minha mãe que já me disse que preferia morrer de Covid do que não poder abraçar os seus. Dói-me muito e Sr.Padre Tolentino o que fazer a todos os que na sua recta final se sentem assim? Ela que é muito católica sente-se perdida e triste muito triste. Há que protege-los sim senhor e penso nos que estão completamente sós em suas casas. Não morrem da doença...morrerão da cura.
    Imperou a solidariedade mas após esta tormenta há que juntar os cacos e seguir em frente.

    Beijos Pedro e que todos os teus estejam bem incluindo os teus pais porque deves pensar muito neles.

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    1. Estou em contacto com os meus pais todas as semanas, Fatyly.
      E vou sabendo que tudo está bem porque o meu pai me manda o Jornal das Beiras todos os dias.
      Se o jornal não chega apitam os alarmes.
      Beijos

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  3. A mais terrível tragédia dos tempos contemporâneos!
    Um abração( com distanciamento recomendado) carioca.

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    1. Aquele abraço, Paulo Tamburro.
      Com especial solidariedade para o Brasil que não merecia esse Presidente

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  4. Um artigo interessante!!

    Eu pessoalmente não estou a sofrer com o isolamento, antes pelo contrário: calma, com mais energia. Como e durmo melhor. E alegro-me com pequenas coisas, que antes do Covid-19 me irritavam, como receber presentes. O que me preocupa são o sofrimento dos outros.

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    1. Se for um tempo de reflexão até é bom, Teresa.

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    2. NÃO, NÃO é tempo de reflexão‼
      É tempo de limpar a casa, o jardim e o terraço‼

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  5. gosto de tudo que o nosso cardeal Tolentino escreve. É um sábio, o senhor cardeal. Mas neste momento confesso que não me animam por aí além as suas palavras. Há demasiadas interrogações no ar. Vamos ver.
    Boa noite, Pedro.

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