Apóstolas (e não Apóstatas) - Henrique Raposo
Este ensaio defende o fim do celibato obrigatório do clero e defende a ordenação de mulheres. A missa pode e deve ser celebrada por uma mulher. Não se trata de uma cedência ao ar do tempo, trata-se de uma cedência ao ar bíblico. Homem e mulher são iguais no corpo de Cristo. Não, não se trata de colocar a Igreja dentro da “modernidade”, seja lá o que isso for, trata-se de aproximar a Igreja de Jesus Cristo. O género não está antes da nossa humanidade partilhada, está depois. A Igreja não é Deus, não é Cristo, é um edifício imperfeito e sempre em obras, uma espécie de torre de Babel omnipresente mas não omnisciente, imperecível mas não perfeita. Esta torre católica nunca deixa de ter andaimes, roldanas e cordas, porque a tradição é viva e orgânica, não é um museu de figuras e normas intocáveis, quais bezerros de cera dourada. Naturalmente, admito a falibilidade dos argumentos que se seguem. Não admito que não se realize este debate. Não admito que a mera invocação destas ideias seja rotulada como herética.
MULTIPLICAI-VOS
O celibato obrigatório não tem suporte bíblico, é só uma construção política da Igreja. No Evangelho, Jesus nunca nos diz que o trabalhador evangélico não pode ter mulher e filhos. Nunca. Diz-nos outra coisa diferente, que não pode ser confundida com a defesa da castidade, a saber: há momentos, diz Jesus, em que um cristão tem de ir contra a vontade da sua própria família se quiser permanecer fiel à revelação. Podemos e devemos ir contra o nosso próprio sangue se os nossos filhos ou pais estiverem moralmente errados. A nossa lealdade está em primeiro lugar na transcendência e não na imanência, mesmo que seja a imanência filial. É isto que Jesus quer dizer quando declara “se alguém vem ter comigo e não me tem mais amor que ao seu pai, à sua mãe, à sua esposa, aos seus filhos, aos seus irmãos, não pode ser meu discípulo” (Lc 14, 26). Esta passagem é um alerta contra o relativismo passional, e não um pedido para um exército de celibatários. Até porque os apóstolos eram homens com mulher e sogra: “Entrando em casa de Pedro, Jesus viu que a sogra dele jazia no leito com febre” (Mt 8, 14).
Além da fidelidade à “Bíblia”, uma questão atemporal, este tema remete para o caso dos abusos, uma questão do nosso tempo. Os abusos não têm como causa o celibato. A maioria dos casos de pedofilia é cometida por homens casados, os pais, os tios, os avôs, os vizinhos. Sucede que o celibato, a partir de uma certa idade, é um fator de risco adicional no clero. Quem é o diz é Hans Zollner, o jesuíta responsável pela cimeira da Igreja sobre o assunto: “A forma de vida celibatária torna-se um fator de risco quando a vida sacerdotal entra em crise.” Não é preciso um doutoramento em neurociência para compreender que uma vida sem afeto, sem toque, sem amor, sem sexo, sem mulher e sem filhos é uma vida contranatura. E não será também uma vida pouco cristã? Não haverá uma contradição teológica entre a “Bíblia” que tem o Cântico dos Cânticos e a Igreja que força a castidade dos seus servidores? Não haverá uma contradição entre a Igreja que diz que a família é o valor absoluto e a mesmíssima Igreja que é liderada por homens que não podem formar família?
FEBE
Em 2002, sete mulheres e dois bispos começaram a mudar a história a bordo de um barco no Danúbio, perto de Passau, Alemanha. Dentro de água e fora da jurisdição de qualquer diocese, os bispos Regelsberger e Braschi ordenaram como padres da igreja as tais mulheres: Pia Brunner, Ida Raming, Iris Muller, Christine Mayr-Lumetzberger, Adeline Roitinger, Gisela Forster e uma sétima que tinha como cognome “Ângela Branca”. Algumas eram freias. Digo “eram”, porque as sete do Danúbio foram excomungadas. Algumas ouviram dos seus superiores que aquela rebeldia era tão vil como um abuso sexual.
Este caso não é muito conhecido por duas razões. Em primeiro lugar, os dois bispos são rebeldes, não fazem parte da hierarquia, pertencem a um movimento sem validade, “catolicismo independente”. Mas, com ou sem validade, a coragem está lá. Em segundo lugar, o caso é anterior às redes sociais. Se tivesse ocorrido em 2016 ou 2019, teria tido uma repercussão muitíssimo maior. As sete do Danúbio seriam hoje figuras à escala de Greta Thunberg. Julgo, porém, que é só uma questão de tempo até que este gesto seja repetido por dois bispos da verdadeira hierarquia. E, seja como for, as sete do Danúbio trazem à memória Ludmila Javorová, padre da igreja checa na clandestinidade (anos 70 e 80). Neste caso, não se coloca a questão da validade: Javorová foi ordenada por um bispo da hierarquia. Se Javorová serviu a Igreja debaixo de fogo do totalitarismo comunista, outras Jovorovás não o poderiam fazer no dia a dia normal?
A IGREJA NÃO É DEUS, NÃO É CRISTO, NÃO É UM MUSEU DE FIGURAS E NORMAS INTOCÁVEIS
Começo com estes casos para ilustrar que a mulher padre é uma ideia com um passado e com um presente. As sete do Danúbio são a face mais visível de um movimento que se move ao lado da igreja numa espécie de desobediência civil. Nos EUA, por exemplo, há centenas de mulheres padres nesta desobediência civil. São apoiadas por inúmeras organizações como Roman Catholic Womenpriests, Voices of Faith Iniciative ou Women Priests Project: angariam dinheiro para estas igrejas paralelas e para a educação teológica destas mulheres e do público, cada vez mais recetivo à ideia. Até porque as irmãs, as freiras, estão cada vez mais desafiantes e vocais na imposição da sua voz. Há neste momento um movimento sufragista de freiras, dos EUA à Alemanha. A par do movimento das irmãs, há um movimento das leigas. Olhe-se por exemplo para a KFD, organização das católicas alemãs que conta com 4 mil associações e 450 mil inscritas. 450 mil vozes lideradas por uma política da CDU, Mechthild Heil, católica, conservadora, feminista e reformista dentro da igreja. Heil tem dito, e bem, que os bispos têm de abdicar do poder 100% masculino e que essa não abdicação de poder é que é absolutamente anticristã.
Não é a ordenação de mulheres contrária à vontade de Jesus tendo em conta que os 12 são 12 homens? A meu ver, manter a conversa só aqui revela uma leitura superficial da “Bíblia”. Superficial e incoerente. É verdade que os 12 são 12 homens, mas também é verdade que Jesus não ordenou o celibato. Então como ficamos? Quando nos dá jeito, seguimos Jesus à risca como se Ele nos tivesse deixado um mero Excel teológico, mas quando não nos dá jeito já não O seguimos à letra? Depois, importa frisar que Jesus sabia que atuava numa sociedade historicamente situada. Jesus Cristo é a intersecção entre o tempo de Deus e o tempo dos homens; é Deus a escrever não num vácuo, mas num momento historicamente situado. Neste sentido, importa recordar que Jesus não contesta a escravatura. Não há uma passagem em que Jesus diga taxativamente que a escravatura é uma prática condenável. Quer isto dizer que Jesus é a favor da escravatura? Não. Mas é curioso que não a condene de forma aberta. Há momentos assim em Jesus, momentos de uma enorme sabedoria política. Daí a César o que é de César, por exemplo. Mas claro que Ele nos deixa a pista que só seria percebida e consumada 1800 anos mais tarde: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo” (Gl 3, 28). E, se esta frase da Carta aos Gálatas nos permite dizer que Jesus está contra a escravatura, então também nos permite dizer que Jesus está contra a subalternidade da mulher. Demorámos 1800 e tal anos para compreender “não há escravo e livre”. Precisamos de mais um século para compreender “não há homem e mulher”?
Ao longo dos Evangelhos, a atitude de Jesus em relação às mulheres é reveladora. Em primeiro lugar, traz as mulheres para a praça pública. As mulheres estavam confinadas à vida doméstica, as discussões políticas e teológicas na praça pública eram dos homens. Jesus quebra esta regra, trazendo as opiniões e os gestos das mulheres para o centro do espaço público. Quando uma mulher ousa falar, Jesus manda calar os doutores da lei. Isto era revolucionário há 2000 anos na Palestina. Parece que continua a ser revolucionário à beira de 2020. Em segundo lugar, Jesus não se limita a dar voz às mulheres na praça pública. Dá-lhes razão. Através de Jesus, as mulheres vencem sempre os debates com os homens que pretendem silenciar as suas palavras ou censurar os seus gestos. Por outro lado, há que frisar que Jesus também mandata mulheres para o trabalho de apóstolo. É Maria Madalena quem vê Jesus ressuscitado pela primeira vez: “Ela aproximando-se, exclamou em hebraico, Rabbuni” (Jo 20, 16). E, a seguir, Jesus dá-lhe uma missão de apóstolo: vai e dá a boa nova! É curioso verificar que Pedro e os outros recusam acreditar na boa notícia de Madalena; fazem lembrar os judeus que recusavam acreditar na boa nova de Caleb. Se recuarmos um pouco a fita do tempo, verificamos que são elas, Maria Madalena, Maria, Salomé, que ficam no momento mais delicado, a crucificação e a colocação de Jesus no sepulcro. Eles desaparecem com medo, elas ficam. E, já agora, é Maria quem reúne os apóstolos amedrontados. Até se pode fazer o caso de que Maria é o grande apóstolo, é ela o ponto de ligação de todo o Evangelho, desde Gabriel até aos dias pós-ressurreição. Um país mariano como Portugal não pode ficar indiferente a este argumento.
O CELIBATO OBRIGATÓRIO NÃO TEM SUPORTE BÍBLICO, É UMA CONSTRUÇÃO POLÍTICA DA IGREJA
Esta defesa da abertura do púlpito às mulheres ganha ainda mais força quando recordamos os primeiros anos da Igreja. E nem sequer estou a falar do diaconato, que esteve aberto às mulheres até ao século XII. Estou a falar da paridade entre homem e mulher da igreja original.
Não haverá peça de teologia cristã mais importante do que a Carta aos Romanos, de São Paulo. Pois bem, os agradecimentos finais desta carta (Rm 16, 1-16) são dominados por mulheres. Sim, Paulo dedica a grande peça teológica da cristandade a mulheres que são tratadas como diaconisas, trabalhadoras evangélicas e até por apóstolas. Sim, porque “apóstolo” quer dizer “mandatado”. Se Cristo mandata Madalena para a maior boa nova da história, São Paulo mandata as seguintes mulheres, Febe, Júnia, Prisca, Pérside, Trifosa, Júlia, e a irmã de Nereu. Elas estão em pé de igualdade numérica com eles. E estão em superioridade na qualidade dos elogios. Estas mulheres têm uma autoridade plena ao nível teológico e ao nível organizativo, sobretudo Febe, Júnia e Prisca ou Priscila.
Febe é a primeira pessoa a receber o agradecimento, porque provavelmente é o correio da carta. Ou seja, é Febe quem aparece em Roma representando Paulo. “Recomendo-vos”, começa Paulo, “a nossa irmã Febe, que também é diaconisa na igreja de Cêncrea.” Cêncrea era um porto perto de Corinto. “Recebei-a no Senhor, de um modo digno dos santos, e assisti-a nas atividades em que precisar de vós. Pois também ela tem sido uma protetora para muitos e para mim pessoalmente.” Quem é que em Roma recebe a carta das mãos de Febe? Provavelmente outra mulher, Priscila. Priscila é a segunda pessoa a surgir nos agradecimentos e até aparece antes do seu marido, Áquila. “Saudai Priscila e Áquila, meus colaboradores em Cristo Jesus, pessoas que, pela minha vida, expuseram a sua cabeça.” Nesta época, Priscila é porventura o cristão mais importante fora os nomes sagrados. É o cristão ‘normal’ mais importante, digamos assim. Ela e o marido estão na base de mais dois centros da cristandade emergente além de Roma, Corinto (Grécia) e Éfeso (Turquia). E o que dizer de Júnia, que é tratada por Paulo como apóstola? “Saudai Andrónico e Júnia, meus concidadãos e meus companheiros de prisão, que tão notáveis são entre os apóstolos e que, inclusivamente, se tornaram cristãos antes de mim” (Rm 16, 7).
Não seria extraordinário se a Igreja em 2020 se aproximasse desta pureza original? A exclusão da mulher do clero é uma obra do homem, não de Cristo. A exclusão da mulher do púlpito é uma cedência da Igreja, a cidade de Deus, ao ar que vem da cidade dos homens.
in Semanário Expresso, 23.11.2019, p 44
Bom dia
ResponderEliminarDepois de ler este artigo , fico mesmo com a ideia que o Celibato nunca fez sentido na Igreja , e muito mais o porquê da sua ainda existência .
JAFR
Com a crise de vocações é melhor repensarem essa política, Joaquim Rosario.
EliminarNão simpatizo com o escriba, mas desta vez parece-me ter razão. A ordenação de mulheres é um problema da institução igreja católica e não da religião. Mas a crise de vocações grassa nos dois sexos.
ResponderEliminarBom dia, Pedro
Se se exclui à partida um dos sexos essa crise é exponenciada.
EliminarDeus escreve direito por linhas tortas; este escriba talvez escreva torto por linhas direitas...
ResponderEliminarSe tudo fosse simples!...
As mudanças na Igreja demoram muito tempo.
EliminarSempre assim foi.
Texto perfeito e de encontro ao que há muito penso. Att chamada'Igreja' anda muito devagar e é lenta por natureza.
ResponderEliminarO HRaposo andou depressa e bem.