Dois pesos e duas medidas, não! (Frei Bento Domingues, O.P. Público 22NOV2015)
1. A Revista Islâmica Portuguesa Al Furqán fez uma declaração muito ampla sobre os acontecimentos de Paris. Destacamos a seguinte passagem:
O ser humano merece viver em paz, independentemente de raça, credo ou cor. Não ao que aconteceu em Paris. Não ao que se passa na Palestina. Não ao que ocorre na Síria. Não ao que acontece no Iraque. Não ao que ocorre no Afeganistão. Não ao que se passa na Birmânia. Não e não aos massacres, não às atrocidades, não ao egoísmo e não à hipocrisia. Ninguém deve ser outro, mas sim o respeito mútuo. Merecemos viver num mundo melhor.
No mundo contemporâneo, global, nada é simples. Já quase não existem sociedades homogéneas do ponto de vista étnico ou religioso. Ao contrário da opinião corrente, como mostra L'Atlas des Religions (2015), nem todas as religiões são instituições petrificadas. Muitas delas evoluem, deslocam-se, recompõem-se como as culturas e as civilizações.
Se é verdade que as religiões podem motivar e aumentar os conflitos, também podem e devem fortalecer a coabitação pacífica e intensificar a comunicação. Com uma diferença: quando a religião é convocada para abençoar a violência e para legitimar a guerra, atraiçoa a sua própria natureza; quando religa as pessoas, as comunidades e os povos vive a sua missão essencial. É próprio da cultura e da religião produzirem significações múltiplas. A violência e a guerra respondem quase sempre ao absurdo, com mais absurdo.
Em 1986, João Paulo II convocou para Assis, em Itália, os líderes das grandes religiões para rezarem pela paz, proclamando: nunca mais uns contra os outros; sempre uns com os outros. Participaram, nesse acontecimento memorável, personalidades judaicas, cristãs, muçulmanas assim como de religiões orientais e de tradições africanas. Foi retomado depois do 11 de Setembro para recusar o choque das civilizações e das religiões.
Diz-se que há mundos religiosos e políticos que recusam, por princípio, o caminho do diálogo. Perante a crise síria por exemplo, os grupos do califado ou do império islâmico declaram que não é o diálogo que lhes interessa, mas a luta armada até à morte ou à vitória. Seguem o caminho de bin Laden: os ocidentais querem diálogo, nós queremos a sua morte.
Por tudo isto e muito mais, nas últimas décadas, tornou-se corrente associar a violência e o terrorismo ao Islão. Porque não dar a conhecer as personalidades, os países e os movimentos muçulmanos que lutam contra o ódio e a guerra?
Deixemos, por instantes, outras questões históricas e os terroristas profissionais e seja feita a pergunta: qual poderia ser o contributo dos muçulmanos que vivem em países de liberdade religiosa para que esta seja reconhecida e praticada nos países islâmicos?
Pode parecer uma pergunta ingénua, mas é tempo de a fazer. Será longo e difícil este caminho para a grande maioria. Esta julgará normal que os seus países de origem recusem a liberdade às outras religiões e que, nos países onde vive e trabalha, lhe reconheçam não só a liberdade de culto como o absoluto respeito pelas suas expressões públicas. Isto por uma razão muito simples inculcada desde a infância: o Islão considera-se a si próprio como a religião mais simples e perfeita da revelação divina. O Corão é o próprio ditado de Alá a Maomé e constitui a fonte de toda a lei e de todo o direito: relações com Deus, culto, higiene, urbanidade, educação, moral individual, vida social e política.
Em tempos de crise, os fundamentalistas - de várias origens e diversas reconfigurações - acabarão por se considerarem os guardas da pureza islâmica, recorrendo, se for preciso, aos métodos mais radicais. A submissão a Deus pratica-se na vida toda. Não me espanta.
2. Ainda conheci, na Igreja Católica, o império de certos teólogos que atacavam, como heréticas e inimigas da sã doutrina revelada, as correntes cristãs que defendiam a tolerância e a liberdade religiosa e consideravam uma loucura o diálogo inter-religioso.
A argumentação era muito simples: só a verdade tem direito a afirmar-se e a defender-se publicamente. Para o erro não pode haver nem tolerância nem liberdade. A Igreja Católica é a única verdadeira Igreja cristã e a única verdadeira religião. Deve fazer tudo para impedir a divulgação do erro.
O mais espantoso é o seguinte: investigada sob todos os aspectos, desde o começo do Concílio Vaticano II, a declaração Dignitatis Humanae, sobre a liberdade religiosa, encontrou tantos obstáculos que só foi aprovada a 7 de Dezembro de 1965, apenas um dia antes do seu encerramento por Paulo VI. Seremos capazes de imaginar, hoje, a Igreja Católica contra a liberdade religiosa? Dir-se-á que é um texto menor comparado com as grandes constituições do Concílio. Sem estas não teria sido possível, mas é esta breve declaração que constitui o contributo maior do catolicismo para o diálogo entre os povos e entre as religiões.
Enquanto os países de maioria islâmica não deixarem praticar, nos seus espaços, a liberdade religiosa que para si reivindicam, estão a exigir que entre os seres humanos haja dois pesos e duas medidas. É a desumanidade. Não é bonito.
Já tinha lido esta e outras opiniões que convergem no mesmo e fica em mim a mesma pergunta sem resposta: e convencer os donos entre aspas, das várias religiões? e convencer quem professa tais religiões? Como sair desta?
ResponderEliminarAté na Católica o Papa Francisco tem encontrado imenso lixo, tem feito um grande trabalho diria quase hercúleo e devagar vai obtendo frutos.
Julgo que quer o Oriente, quer o Ocidente tem falhado em todas as frentes, pelos motivos que sabemos, mas para mim a pior de todas é a falta de valores, respeito, educação...e com a ganância do capital a todos os níveis deixaram uma, para não dizer duas gerações sem ocupação, trabalho e modo de vida numa precariedade indecente e cresceram nessa "bomba" que se junta às drogas. Nenhuma violência tem justificação, perdão...sobretudo os fortemente armados sobre quem nada tem para se defender...e a bola de neve vai crescendo.
A resolução do problema deveria já ter sido feita na sua raiz, mas alguns senhores sentadinhos, protegidos de tudo e de todos continuam a manter "carne para canhão"...e fico-me por aqui, porque a propagação da revolta com mediatismo absurdo é mau, muito mau...e deveriam ouvir todos os profissionais internacionais que fazem voluntariado nas zonas de conflito, ouvindo e tratando de quem sofre na pele estes jogos dantescos, talvez a coisa mudasse de figura.
Beijocas e um bom dia
Quem está inscrito nos Centros de Emprego são tratados como presos com apresentações periódicas
Onde é que fica a tecla "Gosto", Fatyly??
EliminarUm comentário que revela sensibilidade e revolta.
Beijocas
Dantes comprava aos fins de semana o jornal Público de propósito para ler os artigos do Frei Bento Domingos e da escritora Alexandra Lucas Coelho com os quais eu me identificava.
ResponderEliminarUm abraço e continuação de uma boa semana.
Frei Bento é outra das presenças assíduas por aqui, Francisco.
EliminarVisão da Igreja que partilho totalmente.
Aquele abraço
Ora aqui está uma opinião com a qual estou de pleno acordo. Se um europeu vai a um país islâmico , e tem que cumprir as suas regras e tradições, leia-se leis e religião, porque não há liberdade de agir de outro modo, porque é que os milhões espalhados pela Europa, não cumprem os nossos?. Porque é que eles têm direitos e liberdades que nós não temos nos seus países? Dir-me-ão que por isso é que eles são bárbaros e nós não. Quando eu era menina, a minha avó que era uma pobre mulher do campo, que não sabia uma letra do tamanho de um comboio, como ela mesma dizia, disse-me uma coisa.
ResponderEliminar"À terra onde fores ter, faz como vires fazer, e se isso for contra os teus princípios, vai-te embora. Cada qual governa a sua casa como pode e sabe."
Um abraço
O diálogo ecuménico só faz sentido se todos estiverem de facto a dialogar, Elvira Carvalho.
EliminarSe uma das partes fica presa aos seus dogmas e não dialoga não vale a pena insistir.
Excelente reflexão de Frei Bento Domingues. Ainda que eu própria seja bastante cética em relação à resolução destas questões - o problema não são as religiões, mas o seu humano -, penso que é importante refletir sobre elas. Afinal, é a consciência que pode mudar o mundo.
ResponderEliminarUm beijinho, Pedro, e obrigada pela partilha
Reflexão e diálogo como já propunha João Paulo II, Miss Smile.
EliminarMas tem de ser diálogo.
Se alguma das partes está fechada ao mesmo temos é monólogo e pura perda de tempo.
Beijinhos
Bom texto de Frei Bento Domingues que, a par de Anselmo Borges e Papa Francisco, são pessoas com o meu respeito e admiração.
ResponderEliminarNa linha do que diz quanto à liberdade religiosa nos países islâmicos, concordo de todo com a recente decisão da Noruega: não aceitar que a Arábia Saudita ( um dos piores regimes existentes) financie a construção de mesquitas naquele país nórdico enquanto não deixar construir igrejas no seu próprio território.
Além disso, sempre defendi que integrar não implica que permita transportar para o país de acolhimento comportamentos que não respeitem o ser humano ( excisão de clitóris, por exemplo).
Integração não pode ser confundida com imposição de costumes e crenças perfeitamente alheias aos locais de acolhimento, São.
EliminarOs noruegueses tiveram a coragem que tem faltado a outros países.
Liberdade religiosa não é deixarmos terceiros impor aquilo que desejam.
Liberdade que funciona só para um dos lados???
Dialogar é sempre reconhecer que não somos portadores da verdade toda e que os outros têm algo para nos ensinar também. É, no fundo, um acto de humildade e verdadeiro respeito. E neste espírito creio que de enriquecimento mútuo.
ResponderEliminarBoa semana!
M. Campos,
EliminarMas é impossível dialogar com quem sistematicamente se recusa a tal.
Pura e simplesmente querem impor costumes, tradições, crenças.
Que os outros têm o dever de aceitar.
Assim não é possível.
Boa semana também
Claro, Pedro. Com quem não dialoga não é possível chegar a lado nenhum. Ignorância ou pura maldade?
EliminarUm texto muito interessante.
ResponderEliminarNa linha do que é a visão ecuménica de Frei Bento Domingues, Gábi.
EliminarUma presença assídua por estas bandas.