MÃE - António Lobo Antunes
António Lobo Antunes
Visão, 8 de Janeiro de 2015
MÃE
Quando eu era pequeno, à noite, e já
estava sentado na cama, a mãe dizia
com Deus me deito
com Deus me acho
aqui vai o Tóino
pela cama abaixo
eu ia, ela apagava a luz, e logo a seguir manhã.
Hoje sonhei que estava sentado no parapeito do Viaduto Duarte Pacheco, a minha
mãe chegava, dizia
com Deus me deito
com Deus me acho
aqui vai o Tóino
pela cama abaixo
eu ia e logo a seguir nada.
Um dia destes vai ser assim, desejo que um dia destes seja assim.
O meu irmão Pedro morreu muito depressa no dia 21 de Dezembro, como era costume
nele sem prevenir ninguém, mas tenho a certeza que, em qualquer ponto seu
com Deus me deito
com Deus me acho
aqui vai o Pedro
pela cama abaixo
só que, se calhar, ninguém tomou atenção a estas palavras. No dia seguinte
fomos, os irmãos, dizer à mãe. Estava sentada na cadeira do costume e
portou--se com a imensa dignidade com que sempre viveu. As suas palavras foram
- Tenham misericórdia de mim.
Era muito bonita, a mãe. Ensinou-nos a ler e ensinou-nos a dançar, talvez as
duas coisas mais importantes do mundo. E lembro-me de a ver andar de bicicleta
na Praia das Maçãs, um pouco indignado porque andar de bicicleta era uma coisa
para nós, não era uma coisa para ela.
Depois de
- Tenham misericórdia de mim
que foi a única vez que a vi usar essa palavra, passado um bocado acrescentou
- Uma mãe não tem o direito de estar viva quando um filho morreu
e morreu de lhe ter morrido o filho, com uma discrição e uma elegância
exemplares. Não tinha nenhuma doença especial: apenas a obrigação de cumprir um
dever e foi juntar-se ao Pedro. Não comia quase, sentada na cadeira em que
recebeu a notícia. Às vezes dizia-lhe versos porque ela gostava muito de
poesia. Na igreja disse-lhe um dos seus sonetos preferidos, de António
Sardinha, que aprendi com o pai. Costumava contar que o pai, enquanto se
arranjava de manhã, na casa de banho, recitava poemas e ela ficava a um canto,
a ouvi-lo.
- O que é que a seduziu no pai, mãe?
- A inteligência
ela que começou a namorá-lo aos catorze anos. Isso e a voz do pai, tão sensual:
- Nenhum dos filhos herdou a voz do pai. Talvez o António, um bocadinho.
A sensualidade e a inteligência, ela que era uma mulher muito inteligente.
Falava, por exemplo, de Bento de Jesus Caraça que tinha conhecido menina, lá na
Beira Alta, com o entusiasmo com que uma adolescente fala de um actor de
cinema. Durante os meses em que esteve a preparar-se para se reunir ao filho às
vezes pegava-lhe na mão e os dedos tão suaves e doces. Não éramos ricos, teve
muitos filhos, tinha de tomar conta daquilo tudo, costurava, trabalha bastante
em casa e quando se arranjava, assim para jantares mais de cerimónia, ficava
uma brasa e pêras. Também não era especialmente terna mas contava-me, por
exemplo, que, era eu bebé, lhe doía a boca de me dar beijos. Entre tantas
mulheres apenas ela me declarou isso. Deve ser tão bom doer a boca de beijar.
Há alturas em que me sinto culpado pelos problemas que lhe atirei para cima:
doenças (uma meningite aos oito meses durante a qual estive em coma,
tuberculose aos três anos), o meu mau feitio
(- Assim tão mau, mãe?)
o meu completo desinteresse pelos estudos
(Só se preocupa em escrever e ler)
o seu receio de me ver acabar a vender pensos rápidos e Bordas d'Água nas esplanadas
porque a literatura não dá de comer a ninguém, esquecida que a culpa era dela
dado que nos ensinou a ler antes de entrarmos para a escola e, em mim, a doença
pegou:
- Só liga a livros e a raparigas.
Eu perguntava-lhe
- Existe alguma coisa para além disso, mãe?
e o facto de não responder significava, talvez, que até certo ponto estava de
acordo.
Às vezes, ao zangar-se
- Não sorrias porque estou a ralhar-te
e, quando eu sorria, era-lhe difícil ralhar-me
- Sobretudo não faças essa carinha
e eu lá mudava a carinha para o resto da descompostura. Julgo que só compreendi
bem o que sentia por mim quando estava com o cancro e ela veio visitar-me. Não
era mulher de lágrimas mas a cara encontrava-se cheia delas, escondidas. Agora
tenho o seu retrato ali e sou eu que as escondo. Pior do que você, mãe, visto
que sou mais chorão. A Zézinha nasceu quando eu na guerra e escreveu-me a
contar: "não sei se estás vivo ou morto porque há um mês e meio que não
sei nada de ti". Estava vivo. Não assim muito vivo, mas vivo, ao passo que
quanto a si, mãe, nunca esteve tão viva como agora.
Com Deus me deito
com Deus me acho
aqui vai o Tóino
pela cama abaixo.
Tanta coisa que eu podia contar a seu respeito, e não conto, e jamais contei.
Não sou capaz, tenho pudor. Enquanto a metiam debaixo da terra e não aguentei,
fui-me embora. Fazia um dia de sol muito bonito. E tive a certeza de ver o
Pedro ao longe. Não precisámos de falar. Quase nunca precisávamos de falar para
nos entendermos. Mas a palavra mãe ia de um para o outro. E somos nós que vamos
pela cama abaixo. A mãe será a última pessoa a ficar, olhando para a gente.
Nascemos de si, não tem o direito de se ir embora. Não concorda? Olhe que eu
ponho-me a sorrir aquele sorrisinho parvo até escutar que sim.
Não consigo comentar muito estou emocionada.
ResponderEliminarTalvez porque olho para a minha mãe e vejo-a dia a dia a pedir para partir e eu não estou deixando, como posso...
beijinho
Fê
Lamento ter-lhe feito recordar uma situação tão penosa, Fê.
EliminarQue a senhora sua mãe não sofra e a Fê a possa acompanhar em todo o percurso.
Beijinho
Já tinha lido esta afirmação de amor à mãe do Lobo Antunes. É impressionante!
ResponderEliminarMaria Eu,
EliminarNão consigo gostar dos livros de António Lobo Antunes.
As crónicas são fenomenais.
Tinha lido na Visão.As crónicas de ALA são das melhores coisas que se pode ler na imprensa portuguesa.
ResponderEliminarPorque é que ele é tão diferente na crónica (excepcional) e nos livros (intragável), Carlos??
Eliminarquem não gostaria de escrever assim?!
ResponderEliminare todos desejamos que nenhuma mãe passe por esse sofrimento
abraços
Angela
Angela,
EliminarO que é curioso, repito, é que António Lobo Antunes escreve assim na crónica.
Na literatura (gosto pessoal) é insuportável e pedante.
Abraços
Já tinha lido e gostei muito.
ResponderEliminarxx
Extraordinário testemunho de amor, papoila.
EliminarGosto imenso de ouvir e ler Lobo Antunes e já conhecia este texto...que bate fundo e dói para caramba.
ResponderEliminarUm texto magnífico, Fatyly
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