QUE COISA SÃO AS NUVENS (JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA) - LIDAR COM A REPETIÇÃO



VIVEMOS A PRIMEIRA VAGA PANDÉMICA COMO UM TRAUMA. 

VIVEREMOS A SEGUNDA TAMBÉM ASSIM

A primeira vaga do vírus encontrou-nos impreparados. A segunda também. Entre uma etapa e outra houve certamente quem vigiasse, quem mantivesse o estado de alerta ou até antecipasse o cenário em que agora de novo entramos. Mas o desejo de um regresso à normalidade era tanto que aqueles que puderam removeram a memória do período anterior. O negacionismo não é só o dos outros e tem múltiplas linguagens e faces dentro de nós. Agarrámo-nos ao verão como a um reencontro com a liberdade, festejando-a como uma prova de vida, convencendo-nos que o mais difícil havia passado, exorcizando nos dias amplos daqueles meses e nas suas despreocupadas esplanadas a escuridão que, afinal não há tanto tempo, tínhamos experimentado.

Vivemos a primeira vaga pandémica como um trauma. Viveremos a segunda também assim. A primeira chegou-nos como o desabar de uma agressão e descobrimo-nos, a essa áspera luz, mais vulneráveis do que alguma vez o pensámos. A atual recidiva agrava o sentimento de que estamos impotentes e sitiados, porque ao peso da pandemia propriamente dito soma-se agora o luto das nossas ilusões, a fragilização trazida pelo cansaço e, aqui e ali, também uma descontrolada explosão social de raiva. No fundo, trata-se de lidar com a repetição, essa categoria com a qual nos precisamos reconciliar e da qual temos muito a aprender.

Enquanto a recordação nos faz, de certa maneira, voltar atrás, regressar ao passado como o havíamos habitado, a repetição impele-nos a dar um passo em frente

Quando se lê, por exemplo, Kierkegaard perde-se o medo à categoria de repetição. De facto, ele vai encontrar nesta categoria uma saída para o impasse a que se tinha chegado na filosofia antiga entre os que sustinham, como Parménides, que qualquer mutação no mundo físico deve ser considerada ilusória, pois a realidade do ser é imutável, homogénea e imóvel, e os que defendiam, como Heraclito, que a essência do mundo é movimento e contínuo devir. Kierkegaard identifica na repetição a possibilidade de explicar melhor a vida do que estas hipóteses da imobilidade permanente e da novidade absoluta constante. E, ele próprio pergunta: “Que seria, ao fim de contas, a vida se não ocorresse nenhuma repetição? Quem desejaria ser apenas um tabuleiro no qual o tempo a cada instante escreve uma frase nova ou versa somente o historial de um passado?” Para o filósofo dinamarquês, a repetição é a chave que explica a nossa existência. Ele deixa claro, porém, que a repetição não pode ser vista como um mero retorno do passado. Na verdade, mesmo quando nos desconcerta, ela é também uma possibilidade de transcendência, na medida em que nos conduz a novos estádios de aperfeiçoamento e progresso. Enquanto a recordação nos faz, de certa maneira, voltar atrás, regressar ao passado como o havíamos habitado, a repetição impele-nos a dar um passo em frente. Por isso, enfrentar a repetição está entre os deveres éticos e espirituais mais sérios.

Sabemos, contudo, que a experiência da repetição nem sempre é indolor. Como ajudou a ver Freud, também acontece que a repetição se relacione com alguma coisa que não ficou resolvida lá atrás no tempo, alguma coisa cuja solução nos escapou e esse falhanço se torna um obstáculo pronto a pôr em causa o que somos. É como se essa vivência primeira que interpretamos como fracasso persistisse depois como uma deficiência, uma dívida ou uma perda que não chegou a ser reparada e que agora nos aprisiona dentro do seu circuito cego através da “compulsão da repetição”. O caminho paciente a trilhar passará pela reelaboração desta espécie de sofrimento original, destapando-o e integrando-o, num processo necessariamente lento. Mas não é raro que a esperança nos coloque do lado da lentidão.

in Semanário Expresso 07.11.2020

Comentários

  1. Tolentino e a sábia crónica da repetição e que me parece frisar que repetir é errar melhor. E é tal como diz com o humano cansaço que lhe leio apesar de Kierkegaard, a esperança é lenta.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Lenta mas existe, bea.
      Esperança que tem que rimar com perseverança.

      Eliminar
  2. É um sábio mas Pedro já não tenho paciência para ler as suas crónicas que são mais do mesmo.
    Desculpa amigo.

    Beijos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Repetir rima com corrigir.
      ADORO ler Tolentino!
      Beijo

      Eliminar
    2. A teresa foi pelo mesmo caminho que eu, as rimas.
      Eu também não dispenso a leitura de Tolentino Mendonça.
      Beijos às duas

      Eliminar
  3. A ÚNICA coisa que me une a JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA é que ele também é AMIGO de SERRALVES!!!

    ResponderEliminar
  4. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

    ResponderEliminar
  5. Um ser que se interroga permanentemente.
    Gosto muito de Tolentino de Mendonça.

    Abraço

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares