Marta e Maria, Eco e Narciso (Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia)
1. É um passo extraordinário do Evangelho segundo São Lucas.
Numa aldeia a caminho de Jerusalém, Betânia, Marta, a dona da casa, convidou Jesus, e, claro, querendo receber bem, como é próprio de uma dona de casa que convida um hóspede ilustre, afadigava-se a trabalhar. Entretanto, a sua irmã, Maria, sentada aos pés de Jesus, na posição própria do discípulo que escuta um rabi, um mestre, pôs-se a ouvir a palavra d'Ele. O trabalho era tanto que Marta veio ao encontro de Jesus e, compreensivelmente, quase em termos de repreensão, atirou-lhe: "Senhor, não te importas que a minha irmã me tenha deixado sozinha a servir? Diz-lhe que venha ajudar-me." Jesus respondeu: "Marta, Marta, andas inquieta e agitada com muita coisa, quando uma só é necessária! Na verdade, Maria escolheu a melhor parte, que lhe não será tirada."
2. Ao longo dos tempos, sobre este texto sucederam-se os comentários. Que Marta representa a acção e Maria a contemplação. Mestre Eckardt, paradoxalmente, chamou a atenção para o facto de a verdadeira mística ser, afinal, Marta, no contexto do que se chamou "a mística de olhos abertos", dirigida à acção a favor dos outros. A contemplação sem acção, sem compaixão, pode não passar de pura ilusão. De qualquer modo, é essencial sublinhar o que raramente ou mesmo nunca se diz: Jesus está a afirmar que as mulheres também podem e devem ser discípulas. Não é por acaso que Maria está precisamente na posição do discípulo: aos pés de Jesus, escutando a sua palavra. Contradizendo o que estava determinado, Jesus teve discípulos e discípulas; as mulheres não podem estar confinadas ao serviço da casa.
3. Numa leitura abrangente e essencial, o que o texto propugna é uma Igreja das duas irmãs e a vida de todos, de cada um e de cada uma, tem de ser a sínteses das duas irmãs. Também na política.
Concretizando.
3. 1. Há hoje muitos que não querem trabalhar e vivem pura e simplesmente encostados ao Estado, aos outros, aos contribuintes. Não é só não procurarem trabalho, é mesmo recusar trabalhar ou ser descuidado no trabalho... Isso é bem conhecido. Ora, o ser humano tem como uma das suas características ser laborans (trabalhador). Não apenas para ganhar a sua vida - uma expressão extraordinária, embora dura: a vida foi-nos dada e, depois, é preciso ganhá-la, e uma das coisas que me têm sido ensinadas pela experiência é que quem nada tem que fazer para ganhar a vida, trabalhando, porque tudo lhe é oferecido, nunca atinge a adultidade -, mas também para se realizar autenticamente em humanidade. De facto, é transformando o mundo que a pessoa se transforma e faz. Isso é dito no étimo de duas palavras: a palavra trabalho vem do latim, tripalium, que era um instrumento de tortura (trabalhar não é duro?), mas também dizemos de alguém que realizou uma obra e que se vai publicar as obras de alguém (do latim, opera) - em inglês, trabalhar diz-se to work, e em alemão Werk é uma obra, sendo o seu étimo érgon, em grego. Ai de quem, à sua maneira, não realiza uma obra, a obra primeira que é a sua própria existência autêntica!
3. 2. Mas ninguém pode ficar absorvido, cansado e morto pelo activismo de Marta. Até Deus, no princípio, segundo o livro do Génesis, determinou um dia de descanso semanal, o sábado, para que o Homem se lembrasse de que não é uma besta de carga. Todos precisamos de integrar na vida a atitude de Maria. Descansar, repousar, festejar, fazer férias (etimologicamente, férias são dias festivos). Ah! E tempo para a beleza, e para a família, tempo para os amigos, tempo para o silêncio, para o encontro consigo. Nestes tempos de dispersão, de corrida louca (para onde?), perigo maior é o do esquecimento de si e da alienação. Nestes tempos de extimidade, do fora extremo, tempos da perdição, precisamos do outro lado: cultivar a intimidade, dialogar na intimidade, lá no mais íntimo, com a fonte de ser e do ser. Ah! E ouvir o silêncio, lá onde se acendem as palavras vivas e luminosas e o sentido do existir. É preciso constantemente pedir com Sophia de Mello Breyner: "Deixai-me com as coisas/ Fundadas no silêncio." Aí, meditar. Quem sabe da sabedoria das palavras? Meditação, moderação, medicina têm um étimo comum: o verbo latino mederi - a raiz é med: pensar, medir, julgar, tratar um doente -, que significa medir, cuidar de, tratar, medicar, curar... Tanto se busca fora e longe o que está dentro e tão perto!
3. 3. Os políticos também precisam? Se precisam! Como é possível a Assembleia da República ter deixado 170 diplomas para o seu último dia de votações?! Uma vergonha! Quando é que os políticos meditam e pensam em profundidade o que é preciso pensar, longe do ruído tagarela e vazio e dos holofotes que cegam e estonteiam?
4. Dei muito recentemente um pequeno curso sobre "Grandes Mitos da Humanidade". Assim, um pouco à maneira de apêndice, deixo aí aquele que considero um dos mitos mais actuais e que diz o amor impossível: o mito de Eco e Narciso.
Narciso, enamorado da sua própria imagem reflectida na água, deixou de comer, de distrair-se com qualquer outra coisa, e ficou apenas uma flor, um narciso. A ninfa Eco, tagarela infindável, foi castigada pela deusa Hera, pois a sua tagarelice impedia-a de vigiar o seu divino esposo Zeus, que a traía: ficou muda, sem voz própria, repetindo apenas em eco as palavras alheias.
in DN, 28.07.2019
"Tanto se busca fora e longe o que está dentro e tão perto". Quantas vezes o penso. Tantas.
ResponderEliminarE é certo que os dois amores finais - de eco e narciso - são impossíveis e até um bocadinho impensáveis ainda que existam muito e cada vez mais; somos cheios de contradições.
:). Marta e Maria são dois em um. Mas Deus descansou ao sétimo dia e trabalhou nos restantes, deveremos depreender que somos mais Marta que Maria, portanto. E viva o trabalho.E os "dias festivos".
Cada vez mais vejo pessoas que adoram a sua imagem e a sua voz, bea.
EliminarUns tontos a caminho do abismo e a arrastar outros com eles.