O mal e Deus: com Valter Hugo Mãe por Anselmo Borges
1. Foi um convite amável e insistente. Para uma conversa com Valter Hugo Mãe. Na Universidade de Aveiro, no dia 8 de Outubro. O tema: Mal.
O que é que se diz sobre o mal? Comecei por recordar que há muitos tipos de mal: o mal físico, o mal moral, o mal metafísico, o mal fora de nós, o mal em nós..., chamando sobretudo a atenção para o facto de, se estávamos ali para essa conversa-debate, é porque nos sentíamos razoavelmente, com algum conforto e sem grandes aflições. Porque, quando o mal se abate sobre nós - um cancro, um terramoto, um tsunami, um filho que se nos morre desfeito em dores e perante a nossa impotência total, quando nos destruímos mutuamente, quando tudo se afunda sob os nossos pés, quando o futuro todo se apaga... -, aí gritamos, choramos, blasfemamos, rezamos..., não debatemos.
Ao longo do tempo, houve tentativas várias de solução para o mal, sobretudo quando nos confrontamos com Deus. Como é que Deus é compatível com todo o calvário do mundo? Lá está Epicuro: ou Deus pôde evitar o mal e não quis; então, não é bom. Ou quis e não pôde; então, não é omnipotente. Ou quis e pôde; então, donde vem o mal? Na sua justificação de Deus, Leibniz concluiu que este é o melhor dos mundos possíveis. Schopenhauer contrapôs: este mundo não passa de uma arena de seres torturados, que sobrevivem devorando-se uns aos outros, ele "é o pior dos possíveis". A solução gnóstica e dualista coloca o mal no interior da Divindade. Há quem pense que devíamos despedir-nos do Deus omnipotente e ir ao encontro do Deus sofredor e crucificado. Segundo Kant, toda a tentativa de teodiceia teórica fracassa.
Penso que é o teólogo A. Torres Queiruga que abre para uma correcta reflexão, ao exigir uma ponerologia (de ponerós, mau): tratar do mal, antes de qualquer referência a Deus, pois o mal atinge todos, crentes e não crentes. Aí, percebe-se que a raiz do mal é a finitude. O mundo é finito e, por isso, não podendo ser perfeito, tem falhas e carências, choques.
Assim, Deus é omnipotente e infinitamente bom. Mas pretender que poderia acabar com o mal no mundo, criando-o perfeito, mas não quer, é uma contradição. Não tem sentido perguntar por que é que Deus não criou um mundo perfeito, pois Deus não pode criar outro Deus. Não se diz que há algo que Deus não pode fazer, apenas se nega uma contradição. Se o mundo inevitavelmente finito não pode ser perfeito, não podemos pretender que Deus o faça.
A pergunta é outra: se o mal é inevitável, porque é que Deus o criou? Aqui começa a pisteodiceia (de pistis: justificação da fé). Há diferentes pisteodiceias, pois todos têm de enfrentar-se com o mal e cada um encontra a sua resposta. O crente religioso também tem a sua: crê em Deus como Amor e anti-Mal e espera a salvação definitiva e plena para lá da morte. Sem Deus, fica-se com o mal e sem esperança, também para as vítimas inocentes.
2. Poucos dias depois, uma jovem senhora, com uma tese académica já pronta, que acabara de sepultar o pai ainda relativamente jovem, telefona-me e eu sinto e ouço as lágrimas a correr e a voz embargada, a tremer e a suplicar, porque também uma irmã acabava de ter um AVC: "É de mais; por favor, reze, por favor reze, a razão não sabe nada, não pode nada..."
E eu lembrei-me das palavras do início em Aveiro: que, perante o sofrimento atroz, as pessoas não debatem, mas choram, gritam, blasfemam, rezam (talvez tudo isto ao mesmo tempo).
E também me lembrei do que escreveu o filósofo agnóstico J. Habermas sobre o último encontro com o filósofo ateu H. Marcuse, que tinha citado: ele "estava na sala de cuidados intensivos de um hospital de Frankfurt, rodeado de aparelhos nos dois lados da cama. Nesta ocasião, que foi o nosso último encontro filosófico, Marcuse, em conexão com a nossa discussão de dois anos atrás, disse-me: "Sabes? Agora sei em que é que se fundamentam os nossos juízos de valor mais elementares: na compaixão, no nosso sentimento pela dor dos outros"".
Estou convicto de que, nisto, quanto à compaixão, Valter Hugo Mãe estará totalmente de acordo comigo.
in DN
Claro que sim...como tudo na vida...o diálogo, o partilhar de ideias e ou o falar do "mal" ou do quer que seja...é a melhor via para resoluções e conflitos internos ou externos e respeitar todos os crentes, não crentes e até de outras religiões, formas de estar e ser.
ResponderEliminarMas onde fica essa vontade quando uma sociedade se fecha? Enfim...gostei e o livro deve ser mesmo interessante.
Beijos
Anselmo Borges, que aqui passa quase todas as semanas, que foi mestre e é amigo do meu pai, é um sábio, Fatyly.
EliminarEstou ansioso para o conhecer pessoalmente
Subscrevo o Anselmo Borges.
ResponderEliminarRepito o que respondi à Fatyly, Carlos - estou ansioso para o conhecer pessoalmente
EliminarUm texto TOTALMENTE ao meu gosto, Pedro, encontrando aqui velhos amigos desde Gottfried Wilhelm Leibniz até Jürgen Habermas.
ResponderEliminarematejoca,
EliminarAnselmo Borges foi mestre, e passou a amigo, do meu pai.
Que resolveu cursar Filosofia praticamente aos 70 anos depois de uma vida inteira a trabalhar como contabilista.
No próximo Verão espero ter a oportunidade de o conhecer pessoalmente.
Porque, pelo que escreve, acho que vamos ser bons amigos.
"O crente religioso também tem a sua: crê em Deus como Amor e anti-Mal e espera a salvação definitiva e plena para lá da morte. Sem Deus, fica-se com o mal e sem esperança, também para as vítimas inocentes".- o poder da finitude é transformador. Só nos faz sentido a vida, se lhe dermos algum sentido e orientação. Pode ser Deus ou não ser. Esse sentido pode ser distinto para cada um, de acordo com o que se valoriza e se identifica no percurso experienciado. Existe o livre arbitrio e com esse as consequências boas e más que são alheias ao Deus do Amor. As escolhas são sempre nossas e com essas, é que temos que traçar o nosso caminho. O Deus que tudo pode e que tudo sustenta, deu-nos o mais importante de todas as coisas -a Vida, para podermos fazer dela o que quisermos. Debater o sofrimento é escolher a perspectiva com que se vive e aborda a vida. Creio que nesse percurso há uma característica fundamental, que faz toda a diferença. A forma humilde como a recebemos e vivemos é que determina a forma como nos alegramos e sofremos ou até mesmo nos debatemos, perante as dificuldades que vamos encontrando. BFS
ResponderEliminarFico sem resposta para um comentário destes, Raquel Mark.
EliminarExcelência em estado puro!
Bfds!