ENCOSTADOS a um CANTO - artigo de Pacheco Pereira
ENCOSTADOS A 
UM CANTO 
 Pacheco 
Pereira
Antes do "ajustamento", as pessoas 
"ajustavam-se" para ir para o Algarve e a grande transumância entupia as 
estradas de Norte para o Sul. Várias vezes escrevi sobre isso e habitualmente, 
no princípio de Agosto, previa-se o "estado do país" em Setembro, no regresso, e 
em Outubro com as primeiras chuvas. Já há vários anos que, no regresso ao 
trabalho, para quem tinha férias - sempre o sublinhei, uma minoria -, a coisa 
estava mais negra do que antes. 
O declive do país não é de agora e 
já de há muitos anos a esta parte se percebia que nada estava a melhorar e 
várias coisas estavam a piorar. Mas a dimensão ainda era apenas a de um lento 
declínio, um escorregar manso para os fundos da casa nacional. Agora é mesmo uma 
queda acentuada, já não para os fundos da casa, mas para o inferno sobre o qual 
ela assentava e que se abriu aos nossos pés. Daí saiu o Diabo e comeu-nos o 
futuro. 
Não há futuro, chega dizer isto. 
Não há futuro e as pessoas sabem-no. Não há futuro para uma grande maioria, mas 
a queda não é para todos, as pessoas também o sabem demasiado bem. Antes, lá 
íamos cantando e rindo, empurrados pela silly season. Agora lá vamos chorando e 
com ranger de dentes. Faz toda a diferença. Eu sei, os meus severos leitores 
sabem-no, os portugueses também, o Governo sabe e até o habitante da Vila do 
Corvo o sabe. Não há futuro. Faz toda a diferença. 
Em Setembro, todos os actores do 
poder, da oposição e das diferentes forças políticas, económicas e sociais 
estarão encostados à parede num quarto cada vez mais pequeno. Encostados a um 
canto. Uns sabem, outros não. Uns vão saber a mal, outros vão tentar abrir um 
buraco na parede. Na verdade, já lá estão todos no canto, mas o mês dos banhos, 
da transumância e do cancro na pele, este ano acumulará mais tensões do que 
descansará. Este ano não haverá sequer silly season que pegue, por muito 
inquérito imbecil que os jornais façam. Vai haver quem faça tudo para a estação 
ser silly, e há gente com muita capacidade para a patetice e que a exerce como 
quem respira, mas os ânimos não estão para as brincadeiras de praia. Ah! E não 
se esqueçam que o vendedor de "línguas-da-sogra" tem que passar factura e podem 
ser multados se não a pedirem. 
Já escrevi e repito que nesse canto 
da casa onde estamos, a raiva vai ser a resposta mais comum. A raiva é um 
sentimento complicado, que nem sempre transparece na violência pública, seja 
contra os familiares, os colegas, os polícias, a montra de um banco, ou um carro 
preto do Governo. George Santayana escreveu que "a depressão era uma raiva 
espalhada fina" e, numa das melhores descrições da raiva "espalhada grossa", 
Melville falava do capitão Ahab que descarregava sobre a baleia branca "a raiva 
e ódio sentido por toda a raça humana de Adão até aos nossos dias". E como se 
não chegasse tão monumental violência ainda diz que se "o peito [de Ahab] fosse 
um morteiro, faria explodir a granada do seu coração em brasa sobre ela", a 
baleia. Já temos baleia, temos o morteiro e temos o capitão Ahab. 
Não há segredo nenhum sobre a 
pretensa passividade e "aquiescência" dos "pacientes" e "pacíficos" portugueses 
face ao "ajustamento". E não há segredo nenhum porque não há qualquer dessas 
atitudes, nem paciência, nem passividade, e muito menos aquiescência. O modelo 
que vê a "impaciência" pelas batalhas campais nas ruas gregas, quando uma 
minoria de anarquistas, esquerdistas e outros partidários do cocktail Molotov se 
atira à polícia, esquece que o bloqueio político que resulta do voto e da 
abstenção dos gregos é muito mais importante para a "crise" do que os confrontos 
de rua. E muito mais democrático, porque aí pode-se falar em nome dos gregos com 
propriedade, mesmo dos que votaram na Nova Democracia. 
É na pedrada na rua que se vê a 
raiva? Não, não é. Não olhem para a raiva de baixo, olham para a raiva de cima. 
É que não são só os de baixo que percebem que estão a ficar encostados a um 
canto, são também os de cima. Os de cima já perceberam que os melhores tempos já 
estão no passado, que o Governo já está mais estragado e hesitante do que o que 
eles desejavam, que já não está intacto e forte, mas que uma mistura de Relvas, 
mais o défice incontrolado, mais, espantem-se, a proximidade de eleições, está a 
dar second thoughts àqueles que queriam apenas como "bons alunos" e executores. 
O magma da "política", que os de cima tanto desprezam, começa a vir à superfície 
e será o "ruído" que não desejam. Ou, como diz o FMI de forma certeira, há 
"fadiga do ajustamento". E os de cima pensam que ainda está muita coisa para 
fazer, para agora já lhes começarem a dizer que se chegou ao limite. Começam a 
ter a sensação de que foi uma oportunidade única, ainda é uma oportunidade 
única, mas que está a acabar, começa a faltar o espaço. O canto começa a ficar 
apertado. Daí a raiva crescente. 
É quando Pedro Ferraz da Costa diz, 
com aquele ar perpetuamente zangado e enjoado com o mundo, que é preciso acabar 
com 100.000 ou 200.000 empregos na função pública, sem problema nenhum, porque o 
Estado vai continuar a funcionar na mesma. É que não é análise, é desejo. É 
quando se defende um mundo que funcione para as "empresas" - uma abstracção 
funcional porque o que eles querem dizer é outra coisa - sem ter que emperrar 
porque há leis, direito e direitos, instituições e eleições, interesses outros 
que não os das classes "certas". Quando esse discurso, bruto e sem ambiguidades, 
veio ao de cima com a decisão do Tribunal Constitucional, percebemos bem a 
raiva. 
No meio disto tudo, Passos Coelho 
fornece outro produto, mais à sua dimensão de executante, mas que também 
transporta alguma desta raiva. É quando Passos Coelho diz que "não estamos a 
exigir de mais", como se fosse pouco o que se está a "exigir" e ainda não 
levaram em cima com a dose toda. É quando avança com mais uma comparação moral 
que mostra o imaginário onde estamos metidos; não podemos correr o risco de nos 
cruzar com os nossos credores "nos bons restaurantes e boas lojas". É mesmo isso 
que os portugueses andaram a fazer nos últimos anos, a comprar malas Vuitton e 
sapatos Jimmy Choo! 
Passos dizia que as pessoas 
"simples" percebiam isto, porque de facto para ele as coisas são assim simples. 
Então como é que nos devemos "cruzar com os nossos credores"? De alpergatas, 
vestidos de chita, trabalhando dez horas por um salário de miséria? É que não é 
preciso andar muito tempo para trás para ter sido assim. Ainda há quem se 
lembre. Deve ser por isso que é preciso "ajustar". 
O papel destas ideias, elas sim 
"simples" no sentido bíblico, é que são aquilo que está metido dentro da cabeça 
do discurso do poder actual, mais por parte dos executantes do que dos 
mandantes. O teatro do poder actual é composto por poucas personagens a preto e 
branco: os credores, os devedores, os empreendedores, os "não competitivos", os 
que "vivem acima das suas posses" e os "ajustados", os "alavancados" e os 
"desalavancados", os "piegas" preguiçosos e os bons alunos que fazem o "trabalho 
de casa" e não querem ter direitos, os "pacientes" e as "baratas tontas". Não é 
um mundo muito complicado, é até assustadoramente simples, mas assusta saber que 
é este teatro de sombras que move o discurso do primeiro-ministro. Nele não há 
pessoas e quando as há estão do lado do mal, são "ruído", são não-económicas na 
sua essência. 
Para alguns, falar dos de cima e 
dos de baixo, é marxismo. Coitados, sabem bem pouco o que é o marxismo, para 
sequer perceberem que Marx escreveu toda a sua obra para explicar que não era 
"científico" falar assim dos conflitos sociais. Não, não é marxismo, nem 
pcpismo, nem bloquismo, é apenas repetir a mais velha percepção de que os 
conflitos sociais de sempre se fazem entre quem ganha e quem perde, quem é 
mandado e quem manda, entre quem tem e quem não tem. Vem em Aristóteles e vem em 
Aristófanes, a sério e a gozar. 
Em alturas de mudança social 
profunda, neste caso associada à destruição da classe média e ao empobrecimento 
generalizado, quem não percebe isto, não percebe nada. Em Setembro, acordará do 
seu sono percebendo o canto a que está encostado. Ou em Agosto, ou em Outubro. 
Porque estas coisas, uma vez maduras, não escolhem nem dia nem hora.  



Caro Pedro
ResponderEliminarLi apenas enviesadamente (volto mais logo) este artigo do sempre controverso Pacheco Pereira. Parece-me uma análise lucida, aliás o que tem acontecido nos ultimos tempos.
Abraço
Rodrigo
A seguir vou comer as minhas bolachas de agua e sal, pois a sua "rubrica" de baixo abre-me sempre o apetite.
Rodrigo,
ResponderEliminarO Pacheco Pereira, quando quer, consegue esquecer-se do cartão, e da cor do cartão, para cortar a direito.
E foi isso que fez neste artigo.
É muito difícil não concordar com o que ele aqui escreve.
Seja qual for a cor partidária.
Bolachas de água e sal, Rodrigo?
Com, ou sem, acompanhamento?
Com um boa compota, um bom queijo, tamos nessa.
Sem nada?
Só se tiver mesmo que ser.
Aquele abraço
Como não concordar? Só tenho pena é que o comportamento do PP se deve ao facto de não gramar o PPC.
ResponderEliminarSe fosse a MFL e não o agora careca Coelho,de certeza que ele não escreveria isto.
Carlos,
ResponderEliminarO PP e PPC fazem faísca.
Mas a análise não é nada a de "loira do sistema".
Se calhar ele só era loira quando a líder era a "Manela", como bem diz o Carlos.
Aproveitemos estes momentos de lucidez enquanto duram.