OS PRAZERES DA COMIDA E DO SEXO: “DIVINOS” ( Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia )

 


1. Quando se fala da Igreja e do sexo, entra-se numa história muito complexa e pouco edificante.

Significativamente, não é com a Bíblia que há dificuldades. De facto, no Antigo Testamento, lê-se, logo no primeiro livro, o Génesis, que Deus criou também a sexualidade e viu que era boa. Do mesmo Antigo Testamento faz parte um dos livros mais belos a cantar o amor erótico: o Cântico dos Cânticos.

Já no Novo Testamento, Jesus raramente se referiu ao sexo, aliás nunca por iniciativa própria, mas para responder a perguntas que lhe foram feitas a propósito do divórcio e para defender a mulher.

2. Factor decisivo para o envenenamento da relação foi a gnose, a primeira grande heresia com que o cristianismo teve de confrontar-se e que, desgraçadamente, não terminou. Segundo a gnose ou gnosticismo, a salvação não se alcança pela fé, mas pelo conhecimento, que é secreto e, em última análise, acessível apenas aos iniciados. Elemento essencial desta doutrina é que o Deus do Antigo Testamento, que é o criador do mundo, não é o mesmo que o Pai de Jesus Cristo. Este mundo, que é o mundo material, procede de uma queda e é mau. Os membros desta heresia insistiam concretamente, na continuação do platonismo, num dualismo radical de alma e corpo, matéria e espírito, sendo o corpo apenas uma espécie de “contentor” da alma: necessário, mas sempre inferior e indesejável.

A gnose pretendia essencialmente explicar a existência do mal no mundo. O maniqueísmo situa-se neste mesmo quadro de compreensão, distinguindo no fundamento de tudo um duplo princípio, um princípio do bem e um princípio do mal; a História é uma luta entre estes dois princípios, com a esperança do triunfo final do Bem. Santo Agostinho era maniqueu, mas, ao tornar-se cristão, teve de abandonar o maniqueísmo, pois, segundo o cristianismo, Deus é o único princípio e fundamento de tudo e tudo fez bem. Ficava um problema gigantesco: como explicar o mal no mundo, se Deus é bom? Santo Agostinho, a partir de uma experiência pessoal negativa da sexualidade e de uma exegese errada — ele não sabia grego e, por isso, seguiu a tradução latina de um passo célebre da Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo V, versículo 12: Adão, “no qual” todos pecaram, quando o original grego diz “porque” todos pecaram —, apresentou como solução para o problema do mal a doutrina do pecado original, embora os Evangelhos não falem dele. O que é facto é que, com esta doutrina, Santo Agostinho, que é, por outro lado, um dos maiores génios da Humanidade, envenenou a sexualidade e tudo quanto de um modo ou outro com ela se relaciona. De facto, esse pecado foi entendido não como o primeiro de todos os pecados, porque todos os seres humanos são pecadores, mas como um pecado herdado de Adão e transmitido por geração, portanto, no acto sexual.

A lei do celibato obrigatório para o clero e sobretudo a misoginia têm também aqui assento. As mulheres são, por um lado, fonte da tentação e, por outro, devem ter filhos, mas sabendo que durante nove meses transportam consigo o pecado. A confissão dos pecados ficou quase exclusivamente centrada no sexo, de tal modo que o confessionário em vez de ser o lugar da libertação se transformou na realidade em câmara de tortura. Segundo o historiador Guy Bechtel na sua obra A carne, o diabo e o confessor, desde o século XVIII muitos terão iniciado o abandono da Igreja, precisamente porque a confissão, patologicamente centrada no pecado sexual, esmiuçado até à exaustão, começou a ser sentida como invasão indevida da intimidade de cada um, ferindo inclusivamente os direitos humanos, de que se começava a ter uma consciência mais viva.

3. Foi neste contexto que provocaram a merecida atenção da opinião pública mundial declarações do Papa Francisco sobre o tema do prazer da comida e do sexo, que vem de Deus, feitas a Carlo Petrini, um jornalista e gastrónomo italiano, e publicadas recentemente no seu livro Terrafutura. Dialoghi con Papa Francesco sull’ecologia integrale (Terra futura. Diálogos com o Papa Francisco sobre a ecologia integral).

O jornalista provocou o Papa, dizendo-lhe que “a Igreja católica sempre anulou o prazer, como se fosse algo a evitar”. Francisco não está de acordo e respondeu que “a Igreja condenou os prazeres desumanos, grosseiros e vulgares, mas sempre aceitou os prazeres humanos, sóbrios, morais”. Francisco opõe-se a “uma moralidade beata, fanática”, que rejeita o prazer. Essa rejeição existiu na história da Igreja, mas constitui “uma má interpretação da mensagem cristã” e “causou enormes danos, que ainda hoje se fazem sentir fortemente em alguns casos.” E, para que não houvesse equívocos, declarou textualmente: ”O prazer vem directamente de Deus. Não é católico, não é cristão ou outra coisa, é simplesmente divino. O prazer de comer serve para que ao comer se mantenha uma boa saúde, tal como o prazer sexual existe para tornar o amor mais belo e garantir a continuação da espécie.”

4. Não nos vivemos dualisticamente: de um lado o corpo, do outro a alma; mesmo se em tensão, o ser humano é uma unidade corpóreo-espiritual. Dada a complexidade do Homem, que pode até levar a confundir a felicidade com a soma de prazeres e a anomia, não é fácil levar uma vida humana na dignidade livre e na liberdade com dignidade para todos. Mas saúda-se a intervenção de Francisco, abençoando o prazer, que não pode ser nem  tabu nem ídolo, um deus falso e enganador. “Simplesmente divino”.

in DN 26.09.2020

Comentários

  1. O papa Francisco não sabe mas sempre pensei como ele. Era o que ensinava a minha directora de colégio. Não se entende a razão de complicar o que em si mesmo é simples e natural. Ponto.

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  2. Ainda bem que o Pedro é sensível a certas vozes da Igreja, há por aí gente que vale mesmo a pena ouvir.

    Abraço

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