O pai-nosso e o Maligno (Anselmo Borges)

 
Levantou-se de repente e de modo totalmente desnecessário uma celeuma à volta do pai-nosso e de uma possível nova versão.

Assim, a actual versão diz: "Pai nosso, que estais nos céus, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na Terra como no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal." Na nova tradução, passaria a dizer: "Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome, venha a nós o teu reino, seja feita a tua vontade, como no céu, assim também na terra. O pão nosso de cada dia dá-nos hoje. Perdoa-nos as nossas ofensas, como também nós perdoamos a quem nos tem ofendido, e não nos leves à provação, mas livra-nos do Maligno."

Fica aqui a minha oposição a esta nova versão, sobretudo se se quiser introduzir na liturgia. Apresento algumas reflexões sobre o assunto.

1. Não tenho objecção especial a que se introduza o "tu" dirigido a Deus. Mas, mesmo assim, chamo a atenção para o perigo de uma possível banalização que se tornou corrente nos dias de hoje. É preciso perceber que Deus se revelou como Abbá, querido Papá, mas ao mesmo tempo perceber que Deus é Deus, infinitamente para lá do "tu cá, tu lá", como alguns comentadores já chamaram a atenção, de modo agudo e até com alguma acidez. É como os pais e os professores. Alguns querem ser tão próximos e "amigos" e iguais dos filhos e dos alunos que, depois, perdem toda a autoridade e, de "amigos", passam a ditadores brutais, sem honra nem glória. Porque não sabem ser pais nem professores.

2. O que me preocupa é sobretudo pretender trazer de novo o diabo, sob a designação de "o Maligno", pois ele tem muitos nomes, como Demónio, Belzebu, Mafarrico, Satanás, Satã, Lúcifer... Mas comecemos pela tentação, agora substituída pela provação.

Como já aqui escrevi (ver "As tentações e o Diabo"), por influência também do Papa Francisco, está-se a rever, em várias línguas, a tradução dopai-nosso nesta questão da tentação, porque há o perigo de pensar que é Deus que leva à tentação. Como acontece no latim, "et ne nos inducas in tentationem"; no italiano, "e non c"indurre in tentazione"; no alemão, "und führe uns nicht in Versuchung"; no ingês, "and lead us not into temptation"; no francês, "et ne nous soumets pas à la tentation"..., sempre com o sentido de: não nos leves, não nos submetas à tentação. Portanto, há aqui sempre o pressuposto erróneo de que Deus é o responsável pelas tentações que podem levar ao pecado, pois seria Ele que nos conduz à tentação. Ora, se Deus é Amor, não tenta as pessoas. Na Bíblia, na Carta de São Tiago, lê-se: "Ninguém diga, quando for tentado para o mal, 'é Deus que me tenta', porque Deus não é tentado pelo mal, nem tenta ninguém. Cada um é tentado pela sua própria concupiscência, que o atrai e seduz." Deus nada tem que ver com o mal, pois Deus é o Bem e o anti-mal.

Significativamente, nas línguas que já mudaram, adoptou-se a tradução que já consta na tradução portuguesa actual: "Não nos deixeis cair em tentação" ou na tentação.

3. Mas fica a pergunta: é o diabo que tenta?

Nem de propósito, o Papa Francisco acaba de dizer, numa catequese sobre o pai-nosso: "Temos de excluir que seja Deus o protagonista das tentações que surgem no caminho dos homens. Como se Deus estivesse à espreita para armar ciladas aos seus filhos. Os cristãos não têm um Deus invejoso, que compete com o Homem, ou que se diverte, pondo-o à prova." Mas também afirmou: "Alguns dizem: para quê falar do diabo, que é uma coisa antiga, que não existe? Olha para o que diz o Evangelho: Jesus foi tentado por Satanás."

Começo por esclarecer que o diabo não faz parte do credo cristão. E, neste tema, é também Immanuel Kant que tem razão, ao colocar na boca de um catequizando iroquês uma excelente pergunta, a partir do pressuposto de que o diabo é preciso para explicar a tentação: se os diabos nos tentam, quem tentou os anjos, para, de anjos bons, se tornarem anjos maus, diabos?

Quando se fala no diabo, é essencialmente para encontrar uma resposta para o mal, personificando-o. Ora, colocar o diabo ao lado de Deus, como se fosse um anti-Deus, no quadro de um dualismo maniqueu, é uma contradição. O diabo não explica nada. O mal é inevitável por causa da finitude. Deus não pode criar outro Deus e, por isso, o mundo finito, em processo, encontra becos sem saída, contrariedades, conflitos, sofrimentos... Mas há quem não acredita em Deus e acredita no diabo.

O diabo não é preciso para explicar as tentações. O ser humano, dada a sua natureza finita, carente, tensional, animal-racional, é sempre tentado, isto é, seduzido pelas "vantagens" aparentes do mal, e pode cair na tentação e, em vez de praticar o bem, praticar o mal e o pecado. E o que é o pecado? Aquilo que, pelo mau uso da liberdade, nos faz mal, a nós e aos outros. Por isso, tem sentido pedir a Deus que não nos deixe cair em tentação, na tentação, e que sejamos responsáveis, convertendo-nos.

E há tantas tentações a seduzir-nos! A tentação da vaidade, da corrupção, da vingança, da preguiça, da utilização dos outros como simples meios, da ostentação, a tentação do laxismo caótico, de legislar a favor de interesses próprios ou do partido em vez do interesse do bem comum, a tentação de ensaio de jogos políticos indecorosos a pensar apenas nas eleições, a tentação da luxúria, a tentação do consumismo idiota, a tentação de não pagar o salário justo, a tentação do poder como domínio, a tentação de promessas eleitorais irresponsáveis e não cumpríveis, a tentação da retórica sofista, a tentação do roubo e de uma deletéria administração na banca e, a seguir, claro, a tentação do "esquecimento" e da mentira, a tentação do clericalismo e do carreirismo na Igreja, a tentação do poder e dos abusos sexuais... Atente-se: tudo isso nos aparece como vantajoso e, portanto, sedutor. Então, o que é preciso? Estar atento para não ir no engano; pelo contrário, ser ético, manter a dignidade, estar atento para não cair na tentação. O que é que se pede então a Deus? Que tenhamos atenção, que não pratiquemos o mal.

3. Senhores bispos, ele há tanta coisa na Igreja que precisa urgentemente de ser mudada! Quanto ao pai-nosso, por favor, deixem estar como está. Tanto mais quanto a mudança só vai criar mais confusões, desnecessárias. Esteve bem o bispo de Lamego, António Couto, quando, a este propósito, sobriamente, disse à jornalista Natália Faria, do Público: "É possível que haja um aspecto ou outro... mas temos de usar os rituais que são universais. Isto está tudo testado."
IN DN 05.05.2019

Comentários

  1. Como sempre uma opinião esclarecida e muito lúcida.
    Abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. A minha avó chamava a estas situações arranjar sarna para se coçar.
      Cada vez mais me convenço que era uma sábia.

      Eliminar
  2. Bom dia
    Um tema sempre muito complexo , mas há coisas que não se deve mexer e o Pai Nosso para mim é uma oração que sendo dita com o verdadeiro sentido , nos deixa mais felizes.
    JAFR

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Este debate, esta polémica, quando há tanta coisa para debater na Igreja, ou é completamente estéril ou se destina a desviar atenções de outros problemas, Joaquim Rosário.

      Eliminar
  3. Pedro, Pedro! Aqui não somente se rir, masa se depara com uma postagem séria e repleta de conhecimentos, além de nos levar à reflexão sobre o certo e o errado, bem como nos abrir os olhos, para a verdadeira essencia de Deus. Gostei imenso do assunto abordado. Feliz dia. Grande abraço.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O Padre Anselmo Borges, mestre do meu pai na Universidade, é um ser humano extraordinário, betonicou.
      E com uma visão moderna da Igreja Católica.
      Aquele abraço

      Eliminar
  4. Anselmo Borges dá a opinião duma mente brilhante. É não se coíbe de chamar as coisas pelo nome, sem rodriguinhos. Tanta coisa a mudar mas a máquina move-se, sempre, aquém da necessidade e da dinâmica das sociedades. Chegam sempre atrasadas ou nunca se fazem as alterações que se impõem.
    Abraço.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Admiro Anselmo Borges sem ainda conhecer pessoalmente o ser humano encantador que o meu pai diz que ele é, Agostinho.

      Eliminar
  5. Muito bem, muito interessante. Também penso que sim, que está tudo já testado.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. A única explicação minimamente lógica para esta tomada de posição é desviar a atenção de outras questões, Fá menor ...

      Eliminar
  6. Mudem, mudem que eu continuarei a rezar a Pai Nosso como me foi ensinado há muito anos...
    EXCELENTE texto!
    Que bem escreve Anselmo Borges; meu Deus!!!!
    Obrigada Pedro, por partilhares.
    Beijo.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Escreve bem e o meu pai diz-me que é um ser humano extraordinário, teresa.
      Beijo

      Eliminar
  7. Ãgora deram-lhe para embirrar com o Padre Nostro...
    ENFIM...
    Haja paciência!
    Bjnh
    ~~~~~~

    ResponderEliminar
  8. Não gosto do bispo de Lamego, pois se opôs às comissões de inquérito sobre abusos sexuais de crianças por padres - tal como os bispos de Santarém, Porto e Funchal.

    Quanto ao Pai Nosso, sinceramente ... para quê mexer-lhe , para cúmulo com esse absurdo do Maligno ?? Tanta coisas a resolver e preocupam-se com isto?!

    Mais um bom texto de Borges

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. A única explicação lógica (??) para esta polémica é tentar desviar atenções do que é realmente importante, São.
      Para não ter que vetar comissões de inquérito, por exemplo.

      Eliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares