PERDÃO DA DÍVIDA (Frei Bento Domingues, O.P.)



1. Tornou-se uma banalidade e um expediente moralista dizer, com estilo enfático, que as nossas sociedades estão irremediavelmente dominadas por imperativos de produção, produtividade e crescimento dos lucros. Hoje, o poder não é militar, religioso ou ideológico, mas tecno-económico. Os modelos e instrumentos que usa – servidos por gráficos e mais gráficos, números e mais números - dispensam a preocupação com as pessoas e os seus estados de alma ou de corpo.  
Seja como for, num mundo onde tudo se compra e vende, parecerá ridículo falar de “perdão da dívida”, embora seja uma questão inevitável, mesmo para Portugal. Persiste uma crença económica de grande simplicidade que, de forma mais ou menos apurada, reza assim: se cada um procurar apenas o seu interesse, consegue-se um mundo justo e calmo, auto-regulado por essa mão invisível de que falava Adam Smith (1723-1790). A experiência por ele evocada repete-se todos os dias: não é da bondade do homem do talho, do comerciante da cerveja ou do padeiro que esperamos o almoço, mas do interesse que todos eles têm em fazer negócio. Com o dinheiro que ganho, compro o que permite a outros garantir a sua subsistência.
Esta harmoniosa crença talvez funcionasse bem se toda a criatura tivesse unhas, viola e escola, oportunidades iguais e saúde. Para cada um se tornar providência de si próprio, parece que ainda falta alguma coisa. Por isso, a solidariedade e o voluntariado não servem apenas para alimentar a preguiça.
O próprio Séneca (4 a.C.- 65 d.C.), diante da mentalidade mercantilista do seu tempo, lamentava que já não se perguntasse pelo que as coisas eram, mas quanto custavam. Sublinhava, no entanto, que o gesto capaz de manter o laço que une os seres humanos, enquanto humanos, era o dom da gratuidade. Para Sócrates, só era digna de crédito a palavra que não se exercesse como um negócio. Aristóteles não era menos avisado: o dinheiro não tem filhos e a moeda não serve apenas para marcar o preço das coisas. Como intermediário, mostra que nós existimos em relação complementar, não destrutiva, uns dos outros.
2. Max Weber escreveu, em 1904, uma obra célebre, “A ética protestante e o espírito do capitalismo”. Situando a condição cristã na gestão da criação confiada por Deus aos seus filhos, a Reforma protestante parecia libertar e santificar o espírito empreendedor.
João Calvino (1509-1564) autorizou o empréstimo com juros, proibido até então pela Igreja Católica, mas praticado pelos judeus, durante a Idade Média, a principal actividade financeira que lhes era autorizada. Ao romper com este tabu no seio do cristianismo, o reformador de Genebra afastou o entrave ao desenvolvimento da livre empresa. A sua reflexão integrava os interesses do conjunto da economia: o dinheiro, na sociedade, religa as pessoas entre si; parado é estéril, mas o empréstimo, com juros, coloca-o em circulação. O dinheiro é tão produtivo como qualquer outra mercadoria.
Calvino é acusado de ter libertado os demónios da busca selvagem do lucro, mas ele tomou algumas precauções – sem dúvida insuficientes - para defender os pobres dos usurários. O empréstimo, para o consumo do necessitado, deve ser sem juros e sem esperar o reconhecimento do devedor.
Diante das derivas que fazem da Reforma a religião do dinheiro, o filósofo protestante, Jacques Ellul, cunhou uma fórmula muito sugestiva: é preciso profanar o dinheiro. Lembra que importa retirar ao dinheiro Mamon, de que fala o Evangelho, as suas promessas ilusórias e reduzi-lo à sua função de simples instrumento material de troca. Como realizar este empreendimento profanador? Numa sociedade dominada pelo dinheiro idolatrado, J.Ellul convida os cristãos a introduzir a esfera do dom e da gratuidade.
3. Não seria eticamente aceitável fazer despesas com o propósito de as não pagar. Mas o “perdão da dívida”, desde as épocas mais recuadas até aos tempos mais recentes, nada tem de insólito. A própria Alemanha, depois de guerras criminosas, beneficiou largamente desse gesto ancestral.
Há 60 anos, 20 países, entre eles a Grécia, Irlanda e Espanha, decidiram perdoar mais de 60% da dívida da Alemanha Ocidental. Segundo uma análise de Éric Toussaint - historiador e presidente do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo -, a dívida antes da guerra ascendia a 22,6 mil milhões de marcos, com juros. A dívida do pós-guerra foi estimada em 16,2 mil milhões. No acordo assinado, em Londres, estes montantes foram reduzidos para 7,5 mil e 7 mil milhões respetivamente. Isto equivale a uma redução de 62,6%. O historiador alemão, Albrecht Ritschl, confirmou que existiu um perdão de dívida gigantesco ao país, que no caso do credor Estados Unidos foi quase total. Em 1953, os Estados Unidos ofereceram à Alemanha um haircut, reduzindo o seu problema de dívida a praticamente nada (Cf. Dinheiro Vivo 28/02/2013).
Pedir o perdão da dívida pode ter inconvenientes. Não lutar por ele, é continuar com o país estrangulado. Na Eucaristia, os cristãos confessam que é no perdão que Deus manifesta o seu poder. Demos essa oportunidade a Angela Merkel.
06.10.2013
in Público

Comentários

  1. Está melhor Pedro? Agora nada de exageros.
    Bjs

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Pelo menos uma semana sem poder ir ao ginásio, mor.
      Tenho a mania que só tenho 20 anos, dá nisto.
      E ainda estou muito tonto.
      Vai passar.
      Bjs

      Eliminar
  2. Sublime, aliás, como de costume!
    Pedro welcome back!
    Abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Frei Bento e o Padre Anselmo Borges têm aqui sempre lugar, Ricardo.
      Aquele abraço!!

      Eliminar
  3. Desejo as tuas rápidas melhoras e um conselho - CUIDA-TE

    Gosto de ler este frade escritor. É imparcial e muito objectivo. Hoje o mundo está todo revirado e parece-me que ninguém escapa desta mudanças...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. luís,
      Frei Bento, que já foi apelidado de bispo vermelho, é uma das vozes lúcidas dentro da Igreja.
      E que poderá dar uma nova imagem desse mesma Igreja.

      Eliminar
  4. Pelos vistos , está melhor: ainda bem, mas - se me permite - juízinho e deixe lá o ginásio, rrsss

    Nunca entendi como alguém minimamente inteligente acredita um pouco que seja neste absurdo da "mão invísivel"!!

    Merkel não é talvez a principal responsável: Durão é um medíocre presunçoso que reduziu a zero a Comissão Europeia, Passos cumpriu a promessa(aliás, a única e só na parte que não ataca os grandes interesses )de ir além das medidas já bem exigentes da troika, os países em dificuldades não se uniram para fazer uma frente comum às exigências alemãs e quando os benditos mercados atacaram a Grécia a Europa inteira reagiu dizendo "Nós não somos a Grécia" sem sequer entender que a partir do abandono daquele país , a assalto continuaria país a país.

    E porquê? Porque a União Europeia é uma manta de retalhos alinhavada pela moeda comum e nada mais!

    Quanto a frei Bento sempre o considerei inteligente e frontal e adorei ouvi-lo dizer à minha frente e publicamente que " o cristianismo é uma religião que os homens palmaram às mulheres".

    As melhoras, Pedro.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. São,
      O eixo franco-alemão foi comandando a Europa.
      Com o aparecimento de Merkel, a linha dura alemã tomou a dianteira.
      Ainda bem que existem vozes com a de Frei Bento para dar algum sentido ao que vemos à nossa volta.

      Mais uns dias e já fico cem por cento :))

      Eliminar
  5. Acontece que os alemães têm memória curta, demasiado curta... e a distorsão moral que o dinheiro provoca faz com que rapidamente, após os anos negros da Alemanha, o sentimento de hegemonia e alter ego volte a minar o projecto de uma Europa verdadeiramente solidaridária e justa. Estamos cada vez mais longe do ideário de reprodução dos Estados Unidos da Europa. As galinhas gordas passaram a alimentar-se dos seus próprios pintainhos. E assim, sem futuro, a própria Alemanha terá os dias contados...É a miséria de uns a sustentar a hegemonia falsa de outros. Não se admite que existam juros de tal forma usurários que inviabilizem por completo o pagamento honesto e sustentado das dívida portuguesa e grega. Não haverá com certeza outra solução, senão o perdão da dívida ( parcial ou total até) e esse existirá, não como uma moeda de verdadeira solidariedade, mas sim como um cunho de sobrevivência para os próprios estados, que como a Alemanha, acham que um estado de pacificação europeu se constroi sobre a miséria e a ausência de solidariedade e humanismo...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Raquel M.
      Há que reavivar a memória a quem padece desse mal de memória curta.
      E explicar o que é o ideário europeu.
      Algo bem diferente do que se vê por estes dias.

      Eliminar
  6. Caro Pedro
    Gosto de o ver por aqui novamente. Essa coisa da ginástica tem os seus inconvenientes e como diz os 20 anos já foram.
    Melhoras!
    Abraço
    Rodrigo

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Grande abraço, Rodrigo.
      Um tipo chega a estas idades, engorda só por respirar, e vai tentando manter a linha.
      Pelo meio, lá acontecem uns acidentes.

      Eliminar
  7. Bom dia, Pedro!

    Então, esteve doente? Nós só nos contatámos, por comentário, uma vez, e portanto, sabemos pouco um do outro.

    Peço desculpa, mas esqueci-me de passar pelo seu blogue, visto só publicar de 15 em 15 dias.

    Eu explico: tenho dois blogues, de nomes, "Afetos e Cumplicidades", que tem o poste mais recente e "Luzes e Luares", onde deixou, agora, o seu segundo comentário e que é o 139º, e não o 1º, se li bem o número.

    Como não posso mantar, EM SIMULTÂNEO, os meus dois blogues, por falta de tempo, pois sou Professora no Secundário, quando publico no "Luzes", por exemplo, fecho a opção "Comentários", no "Afetos" e vice-versa, porque não consigo responder e agradecer a todos os comentários, que lá deixam.

    Onde deixou o seu comentário, no "Luzes", comecei ontem a alinhar um poema para ver se consigo publicá-lo, no fim de semana, e abri a opção comentários, mas esqueci-me de a fechar, o que vou fazer, de imediato, visto que o poema que tem andado a ser comentado está no "Afetos" e que o Pedro ainda não comentou. Parece complicado, mas é só, inicialmente.

    Quanto ao texto de Frei Bento, achei-o extremamente realista e muito culto, qualidades que ele possui, em abundância. A sua escolha foi "cinq étoiles".

    Estamos a viver um momento de crise económica e social, NÃO A MAIS GRAV E,é verdade, mas não sei qual me preocupa mais, se esta, se a crise de VALORES.

    Eu acho que a crise económica e social, é consequência da outra.

    Quanto à Alemanha, é um pais muito organizado, com uma economia, acima da média, e a cultura e a mentalidade daquele povo, é um pouco, como o clima de lá. Depois da Guerra, a Alemanha trabalhou noite e dia, sem soltar "UM SUSPIRO" e conseguiu levantar-se dos escombros, sendo o país que hoje é.

    Quem empresta, normalmente tem posses, quem pede, geralmente tem precisão. Então, vamos lá, step by step, passando nos "exames" e o futuro a Deus pertence.

    Sou de direita, politicamente, mas não tenho, nem uso "palas", portanto sei ver, em todas as direções.

    Viveu-se alguns anos, acima da nossa média. Agora, há repor, equilibrar a nossa balança, sobretudo a que está dentro de nós, e QUEM MAIS NECESSIDADES TEM, É QUEM VAI TOMAR SEMPRE O PEQUENO ALMOÇO FORA, FUMA IMENSO, TEM MUITOS FILHOS, TEM RENDAS E OUTRAS DESPESAS POR PAGAR, PORQUE NÃO PODE PASSAR SEM FUMAR 40 CIGARROS, POR DIA E TOMAR TRÊS CAFÉS, TAMBÉM POR DIA. ENFIM, ENFIM...

    Estamos, quer dizer, eu estou à espera que a América feche, e não é só para balanço. Aquela gente tem uma mente doentia. NÃO ENTENDO TAL PAÍS.

    Pedro, as suas melhoras, e se quiser passe pelos "Afetos e Cumplicidades".

    Desculpe, mais uma vez, o meu esquecimento.

    Um beijo da Emília, que é o meu verdadeiro nome.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Emília,
      Tenho estado "avariado"
      Dei cabo do pescoço no ginásio, a circulação sanguínea foi afectada, fiquei cheio de tonturas.
      Está a passar com a medicação

      O seu comentário é um mimo.
      Nada a tirar, nada a acrescentar.
      Vamos sair desta situação, deste mau bocado.
      Que, mesmo à distância, vou vivendo.
      Sinto-o de outra forma, mas sinto sobretudo a dor de ver o meu país na mão de canalhas.
      No governo e na oposição.
      Que bando de escroques!

      Vou passar pelo outro blogue amanhã
      Fica prometido
      Beijinhos desde Macau

      Eliminar
    2. Pedro,
      Permita-me sff discordar no seu espaço de algumas nuances do comentário anterior. Politicamente não sou alinhada e por isso também não tenho pálas. Esclareço já. Lamento muito, mas quem mais tem necessidades foram aqueles que nos roubaram a todos com os BPN, com as PPP's, com os negócios dos submarinos etc...Esses a quem viver honestamente não chega! Esses, que viveram e vivem, acima de todos nós - até no que toca à Justiça. É curioso ver que até a Grécia foi capaz de condenar à prisão os corruptos no caso dos negócios fraudulentos com os submarinos. Mas nós portugueses, somos isto e muito mais...elegemos corruptos, fumamos muito, temos muitos filhos..., tomamos os pequenos almoços fora - todos os dias...enfim, merecemos mesmo o que temos. Afinal somos nós que OS fazemos masoquistas...quando assumimos em nome de muitos que nada TÊM, nem para um pão e uma sopa comer, que viveram acima das suas possibilidades...o melhor é mesmo esperar que este país feche de vez para balanço e para curar algumas mentes que me afligem muito....é obra!

      Eliminar
    3. Raquel M.
      É por isso que eu mantenho este espaço.
      Para as pessoas apresentarem opiniões.
      Por mais divergentes que sejam.
      E é óbvio que ninguém esquece essa cambada de escroques que menciona e que gastou muito mais que todos os fumadores de cigarros, bebedores de cafés e quejandos.

      Eliminar
    4. Olá, Pedro!

      E da "discussão" nasce a luz.

      Eu recebo-a com muito afeto.

      Abraço.

      Eliminar
    5. Frei Bento via passar por aqui amanhã novamente, Luz

      Eliminar
  8. Quando a lucidez é 'transportada' para a escrita, o produto só pode ser muito bom, como o caso.

    Espero que esteja melhor e, por falar nisso, uma sugestão: durante uns tempos não torça o pescoço a olhar para elas ... :):):)

    Aquele abraço.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. António,
      Frei Bento é alguém que muito admiro, que representa a Igreja que eu quero, que pensa o país, que tem visão, inteligência, cultura.

      Quanto aos olhares, não é por aí.
      Vou ao ginásio com a minha mulher.
      E, francamente, ela é do melhor que por lá há
      Como tal....
      Aquele abraço!!!

      Eliminar
    2. Boa resposta, meu caro!

      Eliminar
  9. Caro Amigo Pedro Coimbra!
    Folgo saber que seu restabelecimento está célere!
    A minha amiga, a Dona Miquelina Pinto Pacca, como faz habitualmente todas às quartas-feiras, no período vespertino, irá à Cripta da Catedral da Sé desfiar o Santo Rosário, solicitando a intercessão do poderoso Cacique Tibiriçá e da Nossa Senhora de Guadalupe!
    Hoje ela desfiará Santo Rosário em sua intenção pelo seu pronto restabelecimento!
    Caloroso abraço! Saudações vigorosas!
    Até breve...
    João Paulo de Oliveira
    Diadema-SP

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ainda estou um bocado tonto, Amigo João Paulo de Oliveira.
      Tenho a sensação de caminhar sobre algodão doce :))

      Eliminar
  10. Os alemães e os franceses deviam ler mais livros de história...

    ResponderEliminar
  11. Um texto esclarecido, de um homem íntegro.
    Então já está bom, Pedro?
    Abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Frei Bento, e o Padre Anselmo, volta e meia passam por aqui.
      Gente séria, gente a sério, Carlos.

      Como comentava com o João Paulo de Oliveira, com a sensação que caminho sobra algodão doce.
      Que chatice esta!
      Aquele abraço!!

      Eliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares