Diz-me onde moras (Miguel Esteves Cardoso)


   
Um dos grandes problemas da nossa sociedade é o trauma da morada. Por
 exemplo, há uns anos, um grande amigo meu, que morava em  Sete Rios, comprou  um andar em Carnaxide.
   Fica pertíssimo de Lisboa, é agradável, tem árvores e cafés. Só tinha um problema. Era em Carnaxide.
Nunca mais ninguém o viu.
   Para quem vive em Lisboa, tinha emigrado para a  Mauritânia!
   Acontece o mesmo com todos os sítios acabados em -ide, como Carnide e Moscavide. Rimam com Tide e com Pide e as pessoas não lhes ligam pevide.
   Um palácio com sessenta quartos em Carnide é sempre mais traumático do que umas águas-furtadas em  Cascais. É a injustiça do endereço.
   Está-se numa festa e as pessoas  perguntam, por boa educação ou por curiosidade, onde é que vivemos.  O tamanho e a arquitectura da casa não interessam. Mas morre imediatamente quem disser que mora em Massamá, Brandoa, Cumeada,   Agualva-Cacém, Abuxarda,  Alformelos, Murtosa, Angeja  ou em qualquer outro sítio que soe à toponímia de Angola.
    Para não falar na Cova da Piedade, na Coina, no Fogueteiro e na Cruz de Pau. (...)
   Ao ler os nomes de alguns sítios -  Penedo, Magoito,  Porrais, Venda das Raparigas,   compreende-se porque é que Portugal não está preparado para entrar na Europa.
   De facto, com sítios chamados Finca Joelhos (concelho de Avis) e Deixa o Resto (Santiago do Cacém),   como é que a Europa nos vai querer integrar?
   Compreende-se logo que o trauma de viver na Damaia ou na Reboleira não é nada comparado com certos nomes portugueses.
   Imagine-se o impacto de dizer  "Eu sou da Margalha" (Gavião) no meio de um jantar.
    Veja-se a cena num chá dançante em que um rapaz pergunta delicadamente "E a menina de onde é?", e a menina diz: "Eu sou da Fonte da Rata" (Espinho).
   E suponhamos que, para aliviar, o senhor prossiga, perguntando "E onde mora, presentemente?", Só para ouvir dizer que a senhora habita na Herdade da Chouriça (Estremoz).
   É terrível. O que não será o choque psicológico da criança que acorda, logo depois do parto,   para verificar que acaba de nascer na localidade de Vergão Fundeiro?
   Vergão Fundeiro, que fica no concelho de Proença-a-Nova, parece o nome de uma versão transmontana do Garganta Funda.
   Aliás, que se pode dizer de um país que conta não com uma Vergadela (em Braga),   mas com duas, contando com a Vergadela de Santo Tirso ?
   Será ou não exagerado relatar a existência, no concelho de Arouca, de uma Vergadelas?
   É evidente, na nossa cultura, que existe o trauma da "terra".
   Ninguém é do Porto ou de Lisboa.
   Toda a gente é de outra terra qualquer. Geralmente, como veremos, a nossa   terra tem um nome profundamente embaraçante, daqueles que fazem apetecer mentir.
   Qualquer bilhete de identidade fica comprometido pela indicação de naturalidade que reze Fonte do Bebe e Vai-te (Oliveira do Bairro - Palhaça).
   É absolutamente impossível explicar este acidente da natureza a amigos estrangeiros  ("I am from the Fountain of Drink and Go Away...").
   Apresente-se no aeroporto com o cartão de desembarque a denunciá-lo como sendo originário de Filha Boa.
    Verá que não é bem atendido. (...) Não há limites. Há até um lugar chamado Cabrão, no concelho de Ponte de Lima !!!
   Urge proceder à renomeação de todos estes apeadeiros.
   Há que dar-lhes nomes civilizados e europeus, ou então parecidos com os nomes  dos restaurantes giraços, tipo : Não Sei, A Mousse é Caseira, Vai Mais um Rissol. (...)
   Também deve ser difícil arranjar outro país onde se possa fazer um percurso que vá da Fome Aguda à Carne Assada (Sintra) passando pelo Corte Pão e Água (Mértola), sem passar por Poriço (Vila Verde),  e acabando a comprar  rebuçados em Bombom do Bogadouro   (Amarante), depois de ter parado para fazer um chichi em Alçaperna   (Lousã).
   
(Miguel Esteves Cardoso)

Comentários

  1. Ahahah!

    Uma gargalhada pelas "11:43 pm" que soou no meu primeiro andar! : ))

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    1. O MEC é genial, Catarina.
      Estão cá, em visita, a minha cunhada e os meus sobrinhos canadianos.

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    2. Ah, sim?! E em que parte do Canadá vivem? Já se referiram às grandes cheias de Alberta e de Toronto? Provavelmente perderam os ventos fortes que derrubaram árvores anteontem.
      Que tenham umas boas férias!

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    3. Vivem em Edmonton, Catarina.
      A minha cunhada tem a minha idade.
      Os meus sobrinhos têm 21 e 19 anos.
      A minha sobrinha (linda!!) tem 16.
      Estive agora mesmo a almoçar com eles.
      Uma doçura, qualquer um deles.

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  2. Eu sou da freguesia da Sé (concelho do Funchal), cá não existem esses nomes "marretas", Pedro! ;)
    Abraço

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    1. Esta toponímia é bestial, Ricardo.
      Dá para rir um bom bocado.

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  3. Aqui temos o Fai Chi Kei (máquina ou kei lou dos fai chis). :)

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  4. Não há pai para este MEC...
    Já me dói a barriga de tanto rir... porque é mesmo assim, há nomes que não lembraram ao demo!
    Que país lindo somos... que pedaços fabulosos de cultura e etnografia aqui se vivem!

    A origem da toponímia de tantos lugares fantásticos só alguns saberão, mas que são um autêntica delícia, lá isso são! Claro que eu falo de contente porque nem no BI nem no cartão de eleitor tenho nenhum destes nomes, apesar de viver não muito longe de uma das ruas da Vergadela que o MEC aqui refere neste notável artigo.


    Beijinhos Pedro e obrigada por mais este momento fabuloso que nos proporcionaste.
    (^^)

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    1. O MEC é genial.
      Faz-me companhia há muitos anos.
      Porque gostávamos das mesmas bandas, dos mesmos livros, porque o lia religiosamente na inesquecível Causa das Coisas.
      Sempre que se proporciona, passa por aqui.
      E deixa toda gente bem disposta.
      Um fenómeno, Afrodite!

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  5. Existe mesmo uma terra chamada "Carne Assada"? Acho que de um modo geral já as conhecia por alto...

    Posto isto a minha aldeia tem um nome bem bonito :)

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  6. Eheheheh

    É por textos assim e outros idênticos, que eu cada vez gosto mais do MEC.
    Quando ele era jovem achava-o insuportável, com a irreverência de menino-bem, educado em Inglaterra e nariz empinado.
    A idade e talvez as agruras da vida, modificaram-no por completo. Isso está bem patente no seu excelente sentido de humor. Adorei esta deliciosa crónica, Pedro! Uma maravilha.:))
    Beijinhos.

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    1. Eu sempre tive uma relação de paixão com o MEC, Janita.
      Que cresceu com o passar dos anos
      Beijinhos

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  7. MEC em todo o seu esplendor.

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  8. Pedro,
    MEC continua no seu melhpr. Porém acho fantástica esta toponímia e desejo que nunca se mude. Se assim lhe chamaram há razão para tal.
    Beijinhos. :))

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    1. Um amigo meu, durante algum tempo, dedicou-se a essa pesquisa, ana.
      Não sei se ainda o continua a fazer.
      Mas é uma pesquisa interessante.
      Beijinhos!!

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  9. Já conhecia e é ótimo.

    Venho convidar o Pedro, homem que gosta de rir e de fazer rir, a visitar o "Dolce & Bichana" - que apesar de ter 2 semanas já vai nutrido de membros...:)

    http://dolcebichana.blogspot.com/

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    1. Dolce,
      Vou lá espreitar sim senhor.
      E, pelo título, abre logo o apetite :))

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  10. Respostas
    1. Este não perde as (muitas) qualidades que tem, Carlos.
      Apura-as, como um bom vinho.

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