Miguel Esteves Cardoso escreve sobre a doença da mulher Maria João Pinheiro




«Deus,
Bem avisaste que eras um Deus invejoso e vingativo. Também sei que Job era um caso-limite: uma ameaça do que eras capaz. Nem eu nem a Maria João temos um milésimo da obediência e da resignação de Job. E castigaste-nos menos. Mas foi de mais.

De certeza absoluta que nos amamos mais um ao outro do que te amamos a Ti. Sabemos que isto não está certo. Mas foste Tu que nos fizeste assim. Admite: deste-nos liberdade de mais. Foste presunçoso: pensaste que Te escolheríamos sempre primeiro. Enganaste-Te. Quando inventaste o amor, esqueceste-Te de que seria mais popular entre os seres humanos do que entre os seres humanos e Tu. Por uma questão de tangibilidade. E, desculpa lá, de feitio. Tu, Deus, tens o pior das arrogâncias feminina e masculina. Achas que só existes Tu. Como Deus, até é capaz de ser verdade. Mas, para quereres ser um Deus real e humanamente amado, tens de aprender a ser um amor secundário. Sabemos que és Tu que mandas e acreditamos que há uma razão para tudo o que fazes, mesmo quando toda a gente se lixa, porque não nos deste cabeça para Te compreender. Esta deficiência foi uma decisão tua: não quiseste dar-nos a inteligência necessária.
Mas deste-nos cabeça suficiente para Te dizer, cara a cara, que nos preocupamos mais com os entes amados do que contigo.

Ajuda a Maria João, se puderes. Se não puderes, não dificultes a vida a quem pode ajudar. Faz o que só um Deus pode fazer: reduz-te à tua significância. Que é tão grande»


Pós - operatório
  • "“Voltámos para casa anteontem [sexta-feira], nesse dia sagrado. Não há no mundo maior delícia do que a normalidade. Cada palavra da Maria João soa-me a música amada. Nos livros avisam que a remoção de tumores cancerosos do cérebro pode provocar alterações de personalidade.
    Eu tinha medo que ela deixasse de ser a Maria João que eu amo. Mais medo ainda tinha que ela deixasse de me amar. A primeira vez que a vi, poucas horas depois da cirurgia, no remanso dos cuidados intensivos, perguntei-lhe se ela me reconhecia. E ela recuou a cabeça ligada, fez uns olhos de surpresa repugnante e perguntou, com convencimento: “Mas quem é o senhor?”
    Nem sequer foi o sentido de humor a primeira coisa a regressar. Nunca se foi embora. A Maria João não recuperou: manteve-se. O milagre não lhe era exterior. O milagre é ela. Ela e todas as pessoas de quem ela gosta, que gostam dela.
    Eu bem que tento guardá-la como um segredo. Mas só estou bem, quando tenho a sorte de ouvi-la e a vê-la e a vivê-la. Escrever sobre ela é a coisa mais fácil que faço: é uma preguiça e um prazer, como se conseguisse enganar quem me lê. É virar as costas ao mundo, que vai tão mal. Mas que é um mundo que ainda contém a Maria João, a pessoa que eu amo, que ainda aceita o amor que lhe tenho. Que cresce, ao contrário do cabrão do cancro, previsivelmente, certamente, sem fazer mal; fazendo bem.
    Meu grande amor: seja de que maneira for, continua. Mesmo deixando de gostar de mim. Mas continua. Vive!” 

Comentários

  1. Caro Pedro Coimbra
    Li por duas vezes este post. À primeira não fui capaz de comentar. Agora apenas uso a etiqueta com assinalou este post. "Emocionante".
    Abraço
    Rodrigo

    ResponderEliminar
  2. Isto não se faz, Pedro, pôr um tipo que tem de gerir um gabinete de lágrimas nos olhos às 11h50m da manhã, que doce crueldade a sua, caro amigo!

    Aquele abraço

    ResponderEliminar
  3. Não sei o que hei-de escrever.

    Ainda consigo dizer que o texto do Miguel é um hino ao amor.

    Pedro, vou publicar este texto, com fotografia, no meu blogue.
    Espero que não se importe.
    Naturalmente farei referência.

    Um abraço

    ResponderEliminar
  4. Rodrigo, Ricardo e António,
    O MEC "faz-me companhia" desde a adolescência.
    Sabia-o senhor de uma inteligência e de uma cultura invulgares.
    Agora tenho a certeza que é um ser humano extraordinário.

    Se quiserem ler todas as crónicas (desabafos, declarações de amor), para além destas duas, estão publicadas online no Público.


    António,
    Publique que estes textos merecem ser lidos por todos.
    Diz bem meu amigo - um hino ao amor.

    Aquele abraço aos três

    ResponderEliminar
  5. Pedro
    Vim logo que li seu "recado"" no meu cantinho!

    Estou lavada em lágrimas, eu vivi cada momento de sofrimento desde o primeiro dia em que foi descoberto o cancro no meu falecido marido até ao seu último momento de vida, não vou comentar não consigo, não tenho palavras, já as tive, passei-as para 82 cadernos que escrevi e, que não penso em publicar porque é doloroso demais.

    Beijinho e uma flor

    ResponderEliminar
  6. Deus escreve direito por linhas tortas e não nos compete perceber os Seus mistérios. No entanto, não posso deixar de frisar que o que ele escreveu é sobre um Deus "judaico", do Antigo Testamento, uma "imagem" ou "ideia" que os antigos tinham precisamente de Deus na altura, não o Deus "humano" de Cristo Jesus que apregoa o amor e se assume como Pai caridoso e carinhoso ao mesmo tempo que, como Homem, se fez igual a nós como um Irmão.

    O amor é uma coisa engraçada. E o que o Miguel Esteves Cardoso escreveu é um autêntico hino ao amor.

    ResponderEliminar
  7. Adélia,
    O Miguel escreve aqui com o coração na ponta dos dedos.
    Um hino ao amor, como bem referem o António e o FireHead.
    Comove qualquer um.
    Beijinho grande


    FireHead,
    Você sabe que o Miguel é católico, não sabe?
    O que ele aqui faz, além do tal hino ao amor que você refere, é ralhar com Deus.

    O mesmo que fez o padre que me casou e baptizou a minha filha mais velha, o meu amigo Luís Sequeira.
    Depois de um enfarte, e de, já no hospital, estarem, médicos e enferemeiras, a dizer que ele não tinha hipóteses, ele resolveu ralhar com Deus e com a Madre Teresa de Calcutá da qual é devoto.
    Porque achava que ainda não era hora de partir.
    Tinha projectos que ainda estavam inacabados (o órgão que vinha da Bélgica e que ninguém conhecia, o centenário de Matteo Ricci, novos cursos no colégio).
    Ralhou com Ele a com a Madre Teresa, mas entregou-se a ambos.
    Sobreviveu e está aí fininho outra vez.

    É isso que o Miguel aqui está a fazer também - a ralhar com Ele.
    Às vezes também é preciso.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não posso dizer o mesmo do padre que casou os meus pais e me baptizou a mim e ao meu irmão. É agora o ex-padre Tavares. Sim, ex-padre. Hoje é um homem casado e o seu filho até namora com a filha de um primo chinês da minha mãe. Na verdade um padre nunca deixa de ser efectivamente padre, mas renunciou ao sacerdócio estando impedindo de exercê-lo, ficando livre como homem. Mas da ordenação, que é um sacramento, não se livra.

      Muitas das vezes pedimos satisfações a Deus. Muitos deixam de acreditar nEle por causa de acidentes, tragédias, desgostos. Mas quem se lembra dEle nas pequenas vitórias e conquistas, por mais insignificantes que sejam, do dia-a-dia?

      Eliminar
  8. Agradeço por me ter trazido até este texto maravilhoso. Confesso que nem sempre tenho tempo para ver todos os textos e também por isso procuro fazer uma texto por semana aproximadamente para não sobrecarregar os meus leitores e comentadores.

    A vida prega-nos partidas que não esperamos e que nos deixam num vale de lágrimas e contradições. A perda dos nossos ou quando a saúde se ausenta são factores decisivos para se questionar o amor na nossa criação de Deus e as provas a que Ele nos submete.

    Penso que na nossa humildade devemos aceitar sem revolta para não agravar ainda mais a situação.
    - Na vida nada acontece por acaso.

    Penso também que nunca devemos perder a esperança da cura e do milagre da vida. Quando conseguimos sobreviver à doença e à derrota já estamos procurando uma cura total.

    Deixo-te um grande abraço e vou dividir este maravilhoso texto com os meus amigos.

    ResponderEliminar
  9. Impressionante, VICI
    Escrito com o talento e o sentimento do Miguel faz-nos sentir pequeninos.


    Luís,
    Este texto merece a amior divulgação.
    Sempre gostei do Miguel Esteves cardoso.
    Depois de ler o que aqui publico, passei a gostar ainda mais.
    Que Deus escute o berro que ele lhe deu e os ajude.
    Aquele abraço

    ResponderEliminar
  10. Muito bonito... Amor verdadeiro, sem presunção, bonito mesmo, emocionante!*

    ResponderEliminar
  11. Lindíssimo e comovente o que ele escreveu. Espero que a Maria João fique bem.

    ResponderEliminar
  12. Catarina e Gábi,
    A gente lê e fica com um nó na garganta.
    Lindíssimo!!

    ResponderEliminar
  13. maria da Luz Azevedo Pereira Alves5 de agosto de 2012 às 05:21

    A MAIOR E MAIS BELA PROVA DE AMOR, NUMA FASE TÃO DURA E DESIGUAL NA VIDA DE DOIS SERES QUE TANTO SE AMAM! DÓI MEU CORAÇÃO AO LER!

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares