Manifesto de economistas aterrados




Manifesto de economistas aterrados (*)

- Crise e dívida na Europa: 10 falsas evidências, 22 medidas em debate para sair do beco sem saída



Introdução

A retoma económica mundial, permitida por uma injecção colossal de despesas públicas no circuito económico (desde ao Estados Unidos até à China) é frágil mas real. Um só continente continua travado. Reencontrar o caminho do crescimento não é a sua prioridade política. A Europa comprometeu-se numa via diferente: a da luta contra os deficits públicos.

Na União Europeia estes deficits são elevados - 7% em média em 2010 – mas bem menor o que a exibida pelos Estados Unidos. Enquanto os Estados norte-americanos com um peso económico mais relevante do que o da Grécia, a Califórnia, por exemplo, estão em quase falência, os mercados financeiros decidiram especular sobre as dívidas soberanas dos países europeus, muito particularmente os do Sul. A Europa, de facto, está prisioneira da sua própria armadilha institucional: os Estados têm que tomar empréstimos junto de instituições financeiras privadas que obtêm liquidez a baixo preço junto da Banco Central Europeu. Os mercados têm, portanto, a chave do financiamento dos Estados. Neste quadro, a ausência da solidariedade europeia suscita a especulação. Tanto mais que as agências de notação jogam na acentuação da desconfiança.

Foi necessária a degradação da notação da Grécia, em 15 de Junho, pela agência Moody’s para que os dirigentes europeus tivessem reencontrado o termo “irracionalidade” que tanto haviam utilizado no início da crise das “subprimes”. Do mesmo modo, descobre-se agora que a Espanha está muito mais ameaçada pela fragilidade do seu modelo de crescimento e do seu sistema bancário do que pelo nível do seu endividamento público.

Para “tranquilizar os mercados” foi improvisado um fundo de estabilização do euro, bem como foram lançados através da Europa planos drásticos e muitas vezes cegos de redução das despesas públicas. Os primeiros atingidos são os funcionários, inclusivamente em França, onde a baixa das cotizações da reforma será uma quebra mal disfarçada do seu salário. O número de funcionários diminui por toda a parte, ameaçando os serviços públicos. As prestações sociais, da Holanda a Portugal, passando pela França, com a actual alteração da idade da reforma, estão em vias de ser gravemente amputadas. O desemprego e a precariedade de emprego desenvolver-se-ão necessariamente nos próximos anos. Estas medidas são irresponsáveis de um ponto de vista político e social, e mesmo no plano estritamente económico.

Esta política, que acalmou muito provisoriamente a especulação, teve já consequências sociais muito negativas em numerosos países europeus, particularmente entre a juventude, o mundo do trabalho e os mais fragilizados. A termo, irá atiçar as tensões na Europa e ameaçará por isso a própria construção europeia que é bem mais do que um projecto económico. Ela supõe que economia é posta ao serviço da construção de um continente democrático, pacificado e unido. Em vez disso, o que emerge é uma forma de ditadura dos mercados que se impõe por toda a parte e particularmente hoje em Portugal, na Grécia e em Espanha, três países que no início dos anos setenta, há pouco mais de trinta anos, eram ainda ditaduras.

Quer seja interpretada como o desejo de “tranquilizar os mercados” por parte de governos amedrontados, ou como um pretexto para impor as escolhas ditadas pela ideologia, a submissão a esta ditadura não é aceitável e já deu provas da sua ineficácia económica e do seu potencial destrutivo no plano político e social. Um verdadeiro debate democrático sobre as escolhas de política económica tem necessariamente que ser aberto em França e na Europa. A maior parte dos economistas que intervêm no debate público fazem-no para justificar ou racionalizar a submissão dos políticos às exigências dos mercados financeiros. Certamente que os poderes públicos tiveram que improvisar alguns planos de recorte keynesiano e mesmo por vezes nacionalizar temporariamente bancos. Mas querem fechar este parêntesis o mais rapidamente possível. O programa neo-liberal continua a ser o único reconhecido como legítimo, apesar dos seus patentes fracassos. Fundado sobre a hipótese da eficiência dos mercados financeiros, assenta na proposta de reduzir as despesas públicas, privatizar os serviços públicos, flexibilizar o mercado de trabalho, liberalizar o comércio, os serviços financeiros e os mercados de capitais e aumentar a concorrência em todos o tempos e em todos os lugares…

Como economistas, estamos aterrados ao vermos que estas políticas continuam na ordem do dia e que os seus fundamentos teóricos não são postos em questão. Os argumentos que, desde há trinta anos, são avançados para orientar as escolhas das políticas económicas europeias, foram duramente atingidos pelos factos. A crise pôs a nu o carácter dogmático e infundado da maior parte das evidências repetidas à saciedade pelos decisores e pelos seus conselheiros. Quer se trate da eficiência e racionalidade dos mercados financeiros, da necessidade de cortar as despesas para reduzir a dívida pública, ou de reforçar “o pacto de estabilidade”, é preciso interrogar estas falsas evidências e mostrar a pluralidade de escolhas possíveis em matéria de política económica. Porque outras escolhas são possíveis e desejáveis, sob condição de que se desate o garrote imposto pela indústria financeira às políticas públicas.

Apresentamos, em seguida, uma apreciação crítica dos dez postulados que continuam a inspirar todos ao dias as decisões dos poderes públicos por toda a parte na Europa, apesar dos desmentidos cortantes trazidos pela crise financeira e as suas sequelas. Trata-se de falsas evidências que inspiram medidas injustas e ineficazes face às quais apresentamos vinte e duas contra-propostas. Nem todas são unanimemente apoiadas entre ao signatários deste texto, mas elas devem ser tomadas a sério, para que a Europa possa sair do atoleiro em que se meteu.


FALSA EVIDÊNCIA Nº 1: OS MERCADOS FINANCEIROS SÃO EFICIENTES

Há hoje um facto que se impõe aos olhos de toda a gente: o papel essencial que desempenham os mercados financeiros no funcionamento da economia. Foi o resultado de uma longa evolução que começou no final dos anos setenta. Seja qual for a forma sob a qual a mensuremos, esta evolução marca uma ruptura nítida, tanto qualitativa como quantitativa, em relação aos decénios precedentes. Sob a pressão dos mercados financeiros, a regulação de conjunto do capitalismo for profundamente transformada dando origem a uma forma inédita de capitalismo a que alguns chamaram “capitalismo patrimonial”, “capitalismo financeiro” ou “capitalismo neo-liberal”.

Estas mutações encontraram a sua justificação teórica na hipótese da eficiência informacional dos mercados financeiros. De facto, segundo esta hipótese, importa desenvolver os mercados financeiros, fazê-los funcionar o mais livremente possível, porque eles são o único mecanismo eficaz de alocação de capital. As políticas conduzidas com obstinação, desde há trinta anos, são conformes com esta recomendação. Trata-se de constituir um mercado financeiro mundialmente integrado no qual todos os actores (empresas, lares, Estados, instituições financeiras) podem trocar todos os tipos de títulos (acções, obrigações, dívidas, derivados, divisas) de todas as maturidades (longo, médio ou curto prazo). Os mercados financeiros começaram assim a assemelhar-se ao “mercado sem fricção” dos manuais: o discurso económico tornou-se capaz de criar a realidade. Sendo os mercados cada vez mais “perfeitos”, no sentido da teoria económica dominante, os analistas começaram a acreditar que o do sistema financeiro se havia tornado muito mais estável do que no passado. A “grande moderação”, este período de crescimento económico, sem subida dos salários, que os Estados Unidos conheceram de 1990 a 2007, parecia confirmá-lo.

Ainda hoje o G-20 persiste na ideia de que os mercados financeiros são o bom mecanismo de alocação do capital. A primazia e a integridade dos mercados financeiros continuam a ser os objectivos últimos da nova regulação financeira. A crise é interpretada, não como o resultado inevitável da lógica da desregulação dos mercados, mas como o efeito da desonestidade e da irresponsabilidade de certos actores mal enquadrados pelos poderes públicos.

Todavia, a crise veio demonstrar que os mercados não são eficientes e que não permitem uma alocação eficaz do capital. As consequências deste facto, em matéria de regulação e de política económica são imensas. A teoria da eficiência assenta na ideia de que os investidores procuram e encontram a informação mais fiável sobre o valor dos projectos que estão em concorrência na procura de financiamento. A acreditar nesta teoria, o preço formado no mercado reflecte o juízo dos investidores e sintetiza o conjunto da informação disponível: esse preço constitui, portanto, uma boa estimativa do verdadeiro valor dos títulos. Ora, é este valor que se supõe capaz de resumir toda a informação necessária para orientar a actividade económica e, assim, a vida social. Nestes termos, os capitais serão investidos nos projectos mais rentáveis abandonando os projectos menos eficazes. É esta a ideia central da teoria: a concorrência financeira produz preços justos que constituem sinais fiáveis para os investidores e orientam eficazmente o desenvolvimento económico.

Mas a crise veio confirmar os diferentes trabalhos críticos que tinham posto em dúvida esta teoria. A concorrência financeira não produz necessariamente preços justos. Pior: a concorrência é, muitas vezes, desestabilizadora e conduz a evoluções de preços excessivas e irracionais, as bolhas financeiras.

O erro maior da teoria da eficiência dos mercados financeiros consiste em transpor para os mercados financeiros a teoria dos mercados dos bens comuns. Neste último caso, a concorrência é, em parte, auto-reguladora, em virtude do que se chama a “lei” da oferta e da procura: quando o preço de um bem aumenta, os produtores vão aumentar o volume da oferta e os compradores vão diminuir o nível da sua procura, pelo que o preço baixará até ao seu nível de equilíbrio. Dito de outro modo: quando o preço de um bem aumenta, as forças do mercado tendem a travar e depois a inverter esse curso altista. A concorrência produz o que se chama “retroacções negativas”, forças compensatórias que contrariam o choque inicial. A ideia de eficiência nasce da transposição directa deste mecanismo para o funcionamento dos mercados financeiros.

Ora, em relação a estes últimos, a situação é muito diferente. Quando o preço aumenta, é frequente observar não uma baixa mas uma alta da procura! Com efeito, a subida do preço significa um rendimento acrescido para aqueles que detêm o título, por efeito da mais-valia realizada. A alta do preço atrai, portanto, novos compradores, o que reforça a subida inicial. As promessas de bónus levam os “traders” a amplificar ainda mais o movimento. Até ao incidente, imprevisível, mas todavia inevitável, que é a inversão das antecipações, na forma do crash. Este fenómeno, digno dos carneiros de Panurgio, constitui uma “retroacção positiva” que agrava os desequilíbrios. É o que se chama uma bolha especulativa: uma alta cumulativa dos preços que se alimenta a si mesma. Este tipo de processos não produz preços justos, mas, pelo contrário, preços inadequados.

O lugar preponderante ocupado pelos mercados financeiros não pode conduzir a qualquer forma de eficácia. Mais ainda, é uma fonte permanente de instabilidade, como mostra claramente a série ininterrupta de bolhas especulativas que conhecemos ao longo dos últimos 20 anos: Japão, Sudeste asiático, Internet, mercados emergentes, imobiliário, titularização. A instabilidade financeira traduz-se, assim, por fortes flutuações das taxas de câmbio e da Bolsa, que não têm, manifestamente, a menor relação com os fundamentos da economia. Esta instabilidade dos mercados financeiros propaga-se à economia real por numerosos mecanismos.

Para reduzir a ineficiência e a instabilidade dos mercados financeiros, sugerimos quatro medidas:

Medida nº 1: Separar estritamente os mercados financeiros e as actividades dos bancos e proibir os bancos de especular por conta própria, a fim de evitar a propagação das bolhas e dos crashes.

Medida nº 2: Reduzir a liquidez e a especulação destabilizadora, através de controlos sobre os movimentos de capitais e taxas sobre as transacções financeiras.

Medida nº 3: Limitar as transacções financeiras às que correspondem às necessidades da economia real (Ex: CSD, apenas para o detentores de títulos com seguro).

Medida nº 4: Estabelecer um plafond para as remunerações dos “traders”.


FALSA EVIDÊNCIA Nº 2: OS MERCADOS FINANCEIROS FAVORECEM O CRESCIMENTO ECONÓMICO

A integração financeira levou o poder da finança ao seu ponto culminante pelo facto de unificar e centralizar a propriedade capitalista à escala mundial. Hoje, é ela que determina as normas de rentabilidade exigidas pelo conjunto dos capitais. O projecto era o de que a finança mercantil e bolsista se substituísse ao financiamento bancário dos investimentos. Projecto que, aliás, fracassou, dado que hoje, globalmente, são as empresas que financiam os accionistas e não o contrário. Entretanto, a gestão, ou, como hoje se diz, a “governância” das empresas, foi profundamente transformada para estar a par com as normas de rentabilidade do mercado. Com a ascensão do poder dos accionistas, impôs-se uma nova concepção da empresa e da sua gestão, que foi posta inteiramente ao serviço dos accionistas. A ideia de um interesse comum aos diferentes participantes na vida da empresa desapareceu completamente. Os dirigentes das empresas cotadas na Bolsa têm hoje por única e exclusiva missão a satisfação do desejo de enriquecimento dos accionistas. Em consequência, deixam eles mesmos de ser assalariados. Como mostra a ascensão desenfreada das suas remunerações. Trata-se de fazer com que os interesses dos dirigentes sejam coincidentes com os interesses dos accionistas.

O ROE (return on equity, ou rendimento dos capitais próprios) entre os 15 e os 25% é hoje a norma que o poder da finança impõe às empresas e aos assalariados. A liquidez é o instrumento deste poder, permitindo que a todo o momento o capital não satisfeito possa voar para outras paragens. Perante este poderio, tanto a instituição salarial como a soberania política, aparecem, pelo seu fraccionamento, em nítida posição de inferioridade. Esta situação desequilibrada leva a exigências de lucro completamente irrazoáveis, porque quebram o crescimento económico e conduzem ao aumento continuado das desigualdades de rendimento. Por outro lado, as exigências de rentabilidade inibem fortemente o investimento: Quanto mais elevada for a exigência de rentabilidade, mais difícil se torna encontrar projectos que possam satisfazê-la. As taxas de investimento mantêm-se historicamente fracas, tanto na Europa como nos Estados Unidos. Por outro lado, tais exigências provocam uma pressão constante no sentido da baixa dos salários e do poder de compra que não é favorável ao crescimento da procura. A travagem simultânea do investimento e do consumo conduz a um crescimento fraco e a um desemprego endémico. Esta tendência foi contrabalançada, nos países anglo-saxónicos, por um crescimento do endividamento das famílias e das bolhas financeiras que criam uma riqueza fictícia e permitem um crescimento do consumo sem crescimento dos salários, mas terminam em crashes.

Para remediar os efeitos nefastos dos mercados financeiros sobre a actividade económica, apresentamos para debate as seguintes medidas:

Medida nº 5: Reforçar significativamente os contra-poderes no seio das empresas para obrigar as direcções a tomar em consideração os interesses de todas as partes envolvidas.

Medida nº 6: Aumentar significativamente a imposição fiscal sobre os muito altos rendimentos, a fim de desencorajar a corrida aos rendimentos insustentáveis.

Medida nº 7: Reduzir a dependência das empresas face aos mercados financeiros, desenvolvendo uma política de crédito (taxas preferenciais para as actividades prioritárias no plano social e ambiental).


FALSA EVIDÊNCIA Nº 3: OS MERCADOS SÃO BONS JUÍZES DA SOLVABILIDADE DOS ESTADOS

Segundo os defensores da eficiência dos mercados financeiros, os operadores de mercado tomariam em consideração a situação objectiva das finanças públicas para avaliar o risco de subscrição de um empréstimo de Estado. Tomemos o caso da dívida grega: os operadores financeiros e os decisores avaliam a situação apenas na base das avaliações financeiras. Assim, quando a taxa exigida à Grécia subia até um nível superior a 10 %, cada um calculou que o risco de incumprimento (défaut) estava próximo: se os investidores exigem um tal prémio de risco, o perigo deve ser extremo.

Trata-se de um profundo equívoco se compreendermos a verdadeira natureza da avaliação pelos mercados financeiros. Como estes mercados não são eficientes, os preços que indicam são, muitas vezes, completamente desconectados dos fundamentos. Logo, é totalmente irrazoável fiarmo-nos apenas nas avaliações financeiras para julgar uma situação. Avaliar o valor de um título financeiro não é uma operação comparável à mensuração de uma grandeza objectiva, como, por exemplo, a medição do peso de um objecto. Um título financeiro é um direito sobre rendimentos futuros: para o avaliar é preciso prever o que será esse futuro. É um caso que tem que ver com um julgamento, não com uma medição objectiva. Porque no instante “t”, o futuro não é de forma alguma pré-determinado. Nas salas de mercado, o futuro é simplesmente aquilo que os operadores imaginam que será. Um preço financeiro resulta de uma crença, uma aposta sobre o futuro: nada garante que o juízo do mercado tenha uma superioridade qualquer sobre outras formas de julgar.

Sobretudo, a avaliação financeira não é neutra: ela influi sobre o objecto que avalia, ela compromete o futuro que imagina. Assim, os agentes de notação financeira contribuem, em larga medida, para determinar as taxas de juro nos mercados de obrigações, atribuindo notas marcada por um elevado coeficiente de subjectividade e mesmo uma vontade de alimentar a instabilidade, fonte de ganhos especulativos. Quando elas degradam a notação de um Estado, aumentam o nível da taxa de juro exigida pelos actores financeiros que adquirem os títulos da dívida pública desse Estado, aumentando por isso mesmo o risco de incumprimento (défaut) que fora anunciado.

A fim de reduzir o domínio da psicologia dos mercados sobre o financiamento dos Estados, avançamos estas duas medidas:

Medida nº 8: As agências de notação financeira não devem ser autorizadas a influir arbitrariamente sobre as taxas de juro dos mercados obrigacionistas, degradando a notação de um Estado: deveria regulamentar-se a sua actividade exigindo que a nota atribuída resulte de um cálculo económico transparente.

Medida nº 8 bis: Libertar os Estados da ameaça dos mercados financeiros, garantindo a recompra dos títulos da dívida pública pelo BCE.


FALSA EVIDÊNCIA Nº 4: O ACRÉSCIMO DA DÍVIDA PÚBLICA RESULTA DE UM EXCESSO DAS DESPESAS

Michel Pébereau, um dos “padrinhos” da banca francesa, descrevia, em 2005, num deste relatórios oficiais ad hoc, uma França afogada pela sua dívida pública e sacrificando as gerações futuras, entregando-se a despesas sociais inconsideradas. Um Estado que se endivida como um chefe de família alcoólico que bebe acima dos seus meios: eis a visão ordinariamente propagada pela maior parte dos editorialistas. A recente explosão da dívida pública na Europa e no mundo deveu-se, no entanto, a algo completamente diferente: aos planos de salvação da finança e sobretudo à recessão provocada pela crise bancária e financeira que começou em 2008: o deficit público médio da zona euro não ultrapassava 0,6% do PIB em 2007, mas a crise fê-lo passar a 7% em 2010. No mesmo período, a dívida pública passou de 66 % a 84 % do PIB.

Todavia, o aumento da dívida pública, em França e numerosos países europeus, foi inicialmente moderado e anterior à recessão: ela provém largamente, não de uma tendência para o acréscimo da despesas públicas – visto que, pelo contrário, elas se mantiveram, em proporção do PIB, estáveis ou em baixa desde o começo do anos 1990 – mas pelo enfraquecimento das receitas públicas devido ao facto da fraqueza do crescimento económico no período e da contra-revolução fiscal lançada pela maior parte dos governos nos últimos vinte e cinco anos. Num prazo mais alargado, a contra-revolução fiscal alimentou continuamente o aumento da dívida pública entre duas recessões. Assim, em França, um recente relatório parlamentar avalia em 100 biliões de euros, em 2010, o custo das baixas de impostos consentidas entre 2000 e 2010, mesmo sem incluir a exoneração das cotizações para a segurança social (30 biliões) e “outros gastos fiscais”. Na falta de uma harmonização fiscal, os Estados europeus lançaram-se numa furiosa concorrência fiscal, baixando os impostos sobre as sociedades, os altos rendimentos e os patrimónios. Mesmo se o peso relativo das diferentes rubricas varia de um país para o outro, a alta quase geral dos deficits públicos e dos rácios da dívida pública na Europa, no decurso dos últimos anos, não resulta principalmente de uma deriva culposa das despesas públicas. Um diagnóstico que abre pistas diferentes da sempiterna redução da dívida pública.

Para lançar um debate público sobre a origem da dívida e, portanto, sobre os meios de intervir, colocamos em debate esta proposição:

Medida nº 10: Realizar uma auditoria pública e democrática para determinar as origens da dívida pública e conhecer a identidade dos principiais detentores de títulos dessa dívida e os montantes respectivos.


FALSA EVIDÊNCIA Nº 5: É PRECISO REDUZIR AS DESPESAS PARA REDUZIR A DÍVIDA PÚBLICA

Mesmo que o aumento da dívida pública resultasse parcialmente de uma alta das despesas públicas, cortar estas despesas não contribuiria forçosamente para a solução. Porque a dinâmica da dívida pública não tem muito que ver com a de uma família: a macroeconomia não é redutível à economia doméstica. A dinâmica da dívida depende, em toda a sua generalidade, de vários factores: o nível dos deficits primários, mas também da margem entre a taxa de juro e a taxa de crescimento nominal da economia.

Porque se o crescimento é mais fraco do que a taxa de juro, a dívida aumentará mecanicamente pelo “efeito bola de neve”: o montante dos juros explode e deficit total (incluindo os juros da dívida) também. Assim, no princípio dos anos 1990, a política do franco forte, conduzida por Pierre Bérégovoy, e mantida apesar da recessão de 1993-94, traduziu-se por uma taxa de juro duradouramente mais elevada do que a taxa de crescimento, explicando o salto da dívida pública da França durante esse período. É o mesmo mecanismo que explicava o aumento da dívida na primeira metade dos anos 1980, debaixo do impacte da revolução neo-liberal e da política de taxas de juro elevadas, conduzida por Ronald Reagan e Margaret Thatcher.

Mas a própria taxa de crescimento da economia não é independente da despesa pública: a curto prazo, a existência de uma dívida pública estável limita a amplitude das recessões (“estabilizadores automáticos”); a longo prazo, os investimentos e as despesas públicas (educação, saúde, investigação, infra-estruturas…) estimulam o crescimento. É falso afirmar que todo o deficit público aumenta a despesa pública na mesma medida ou que toda a redução do deficit permite reduzir a dívida. Se a redução dos deficits domina a actividade económica, a dívida aumentará ainda mais. Os comentadores liberais sublinham que certos países (Canadá, Suécia, Israel) realizaram ajustamentos brutais das suas contas públicas nos anos 1990 e conheceram logo a seguir um forte crescimento. Mas isso só é possível se o ajustamento se faz num país isolado que rapidamente reganha competitividade sobre o seus concorrentes. O que evidentemente esquecem os partidários do ajustamento estrutural europeu é que os países europeus têm por principais clientes e concorrentes os outros países europeus, estando a União Europeia globalmente pouco aberta para o exterior. Uma redução simultânea e massiva das despesas públicas do conjunto dos países europeus só pode ter por efeito uma recessão agravada e, portanto, um novo aumento da dívida pública.

Para evitar que o restabelecimento das finanças públicas provoque um desastre social e político, colocamos em debate estas duas medidas:

Medida nº 10: Manter o nível das protecções sociais ou mesmo melhorá-lo (seguro de desemprego, alojamento…).

Medida nº 11: Aumentar o esforço orçamental em matéria de educação, de investigação e investimento na reconversão ecológica… para por em marcha as condições de um crescimento sustentável que permita uma significativa baixa do desemprego.


FALSA EVIDÊNCIA Nº 6: A DÍVIDA PÚBLICA TRANSFERE O PREÇO DOS NOSSOS EXCESSOS PARA OS NOSSOS NETOS

Há uma outra afirmação falaciosa que confunde a economia doméstica com macroeconomia, a de que a dívida pública representaria uma transferência de riqueza em detrimento das gerações futuras. A divida pública é realmente um mecanismo de transferência de riqueza mas sobretudo dos contribuintes comunas para os beneficiários de rendas.

Com efeito, com base na crença raramente verificada de que baixar impostos estimularia o crescimento e aumentaria as receitas públicas, os Estados europeus, a partir de 1980, começaram a imitar os Estados Unidos numa política de desarmamento fiscal sistemático. As reduções de impostos e de cotizações foram múltiplas (sobre os lucros das sociedades, sobre o rendimento dos particulares mais favorecidos, sobre os patrimónios, sobre as cotizações patronais…) mas o seu impacte sobre o crescimento económico foi muito incerto. Estas políticas fiscais anti-redistributivas vieram agravar, de modo cumulativo, tanto os deficits públicos como as desigualdades sociais.

Estas políticas fiscais obrigaram as administrações públicas a endividarem-se junto dos mercados financeiros e de famílias com posses para financiar os deficits criados. É o que se pode chamar “o efeito jackpot”: com o dinheiro economizado com a baixa dos impostos, os ricos puderam adquirir títulos da dívida pública (que pagam juros) emitida para refinanciar os deficits provocados pela quebra dos impostos que deixaram de pagar. O serviço da dívida pública em França representa 40 biliões de euros por ano, quase tanto como as receitas dos impostos sobre o rendimento. Tratou-se de um feito tanto mais brilhante quanto é certo que se conseguiu criar a ideia de que e dívida deve-se ao peso dos funcionários, dos doentes e dos reformados.

O aumento da dívida pública na Europa e nos Estados Unidos não foi o resultado de políticas keinesianas expansionistas nem de políticas sociais dispendiosas, mas de uma política de favorecimento das classes privilegiadas: os “gastos fiscais” (baixas de impostos e de cotizações) aumentam o rendimento disponível daqueles que menos precisam e facilitam as suas colocações em títulos do Tesouro, remunerados com os juros pagos com os impostos pagos pela generalidade dos contribuintes. Temos como que um regime de redistribuição às avessas, das classes populares em favor das classes mais favorecidas, em virtude da dívida pública cuja contrapartida é sempre a renda privada.

Afim de endireitar, de um modo equitativo, as finanças públicas na Europa e em França, avançamos para debate duas medidas:

Medida nº 12: restituir à fiscalidade directa sobre os rendimentos a sua natureza redistributiva (supressão dos nichos, criação de novos escalões e aumento das taxas do imposto sobre o rendimento…)

Medida nº 13: suprimir as reduções consentidas às empresas que não tenham um efeito visível sobro o emprego.


FALSA EVIDÊNCIA Nº 7: É PRECISO TRANQUILIZAR OS MERCADOS FINANCEIROS PARA PODER FINANCIAR A DÍVIDA PÚBLICA

A nível mundial, o aumento das dívidas públicas deve ser analisado em correlação com o processo de financiarização da economia. Durante os últimos trinta anos, em favor da completa liberalização da circulação dos capitais, a finança aumentou consideravelmente o seu domínio sobre a economia. As grandes empresas recorrem cada vez menos ao crédito bancário e cada vez mais aos mercados financeiros. As famílias vêm uma parte crescente das suas poupanças ser drenada para a finança, para o financiamento das suas reformas, através dos diferentes produtos de colocação ou pela via do financiamento da sua habitação (empréstimos hipotecários). Os gestores de carteiras, que procuram diversificar os riscos, interessam-se por títulos públicos como complemento dos títulos privados. Encontram-nos facilmente no mercado, já que os governos conduzem políticas que levam à acumulação dos deficits: taxas de juro elevadas, baixas de impostos selectivas sobre os rendimentos elevados, incitamentos massivos à poupança financeira das famílias para favorecer as reformas por capitalização, etc..

A nível da União Europeia (UE), a financiarização da dívida pública foi inscrita nos Tratados; desde Maastricht, os Bancos centrais estão proibidos de financiar directamente os Estados que têm de encontrar quem lhes empreste nos mercados financeiros. Esta “repressão monetária” acompanha a “liberalização financeira” e toma o preciso contra-pé das políticas adoptadas depois da grande crise dos anos 1930, que eram de “repressão financeira” (restrições drásticas à liberdade da acção da finança) e de “liberalização monetária” (com o fim do padrão ouro). Trata-se de submeter os Estados, considerados, por natureza, demasiado gastadores, à disciplina dos mercados financeiros, que se supõem omniscientes e eficientes.

Em resultado desta escolha doutrinária, o Banco Central Europeu (BCE) não tem o direito de subscrever as emissões de obrigações públicas emitidas pelos Estados europeus. Privados da possibilidade de se financiarem junto do BCE, os países do Sul tornaram-se vítimas de ataques especulativos. É certo que, desde há alguns meses, o Banco central que anteriormente recusava fazer isso em nome de uma ortodoxia sem falhas, começou a comprar obrigações de Estados para acalmar as tensões nos mercados obrigacionistas europeus. Mas nada indica que isso seja suficiente, se a crise vier a agravar-se e as taxas de juro começarem a disparar. Então, será muito difícil manter esta ortodoxia monetária destituída de fundamento científico sério.

Para remediar este problema da dívida pública, apresentamos para debate duas medidas:

Medida nº 14: Autorizar o BCE a financiar directamente os Estados (ou impor aos bancos comerciais a subscrição de obrigações públicas) a taxas de juro baixas, libertando-os do garrote que lhes é imposto pelos mercados financeiros.

Medida nº 15: Em caso de necessidade, reestruturar a dívida pública, estabelecendo, por exemplo, um plafond a certo nível do PIB, e operando uma discriminação entre credores segundo o volume de títulos que detenham: os grandes detentores deverão consentir num alongamento sensível do perfil da dívida ou mesmo anulações parciais ou totais. É preciso igualmente renegociar as taxas de juro exorbitantes dos títulos emitidos, desde a crise, pelos países em dificuldades.


FALSA EVIDÊNCIA Nº 8: A UNIÃO EUROPEIA DEFENDE O MODELO SOCIAL EUROPEU

A construção europeia apresenta-se como uma experiência ambígua. Há duas visões da Europa que coexistem sem ousar afrontar-se directamente. Para os sociais-democratas, a Europa deveria ter por objectivo promover o modelo social europeu, fruto do compromisso social do após guerra, com a sua protecção social, os seus serviços públicos e as suas políticas industriais. Ela deveria constituir uma barreira face à mundialização liberal, um meio de fazer progredir e prosperar este modelo. A Europa deveria defender uma visão específica da organização da economia mundial, uma mundialização regulada por organismos de governação mundial. Ela deveria permitir aos países membros a manutenção de um nível elevado de despesas públicas e de redistribuição, protegendo a sua capacidade de os financiar, através da harmonização da fiscalidade sobre as pessoas, as empresas e os rendimentos do capital.

Todavia, a Europa não quis assumir a sua especificidade. A visão actualmente dominante em Bruxelas e no seio da maior parte dos governos nacionais é, pelo contrário, a de uma Europa liberal cujo objectivo é o de adaptar as sociedades europeias às exigências da mundialização: a construção europeia é a oportunidade para pôr em causa o modelo social europeu e desregular a economia. A predominância do direito da concorrência sobre as regulações nacionais e sobre os direitos sociais, no Mercado Único, permite a introdução de uma maior concorrência nos mercados de produtos e serviços, diminuir a importância dos serviços públicos e organizar a colocação em concorrência dos trabalhadores europeus entre si. Esta concorrência social e fiscal permitiu reduzir os impostos, designadamente sobre os rendimentos do capital e das empresas (“as bases móveis”), fazendo pressão sobre as despesas sociais. Os Tratados garantem quatro liberdades fundamentais: a livre circulação das pessoas, das mercadorias, dos serviços e dos capitais. Mas, longe de se limitar ao mercado europeu, a liberdade de circulação dos capitais foi alargada aos investidores do mundo inteiro, submetendo assim o tecido produtivo europeu aos constrangimentos da valorização dos capitais internacionais. A construção europeia aparece assim como o meio de impor aos povos europeus as reformas neo-liberais.

A organização da política macroeconómica (independência do Banco Central Europeu em relação à política, Pacto de Estabilidade) é marcada pela desconfiança em relação aos governos democraticamente eleitos. Trata-se de privar os países de toda a autonomia em matéria de política monetária, como em matéria de política orçamental. O equilíbrio orçamental tem que ser atingido, já que toda a política de relançamento foi banida, para deixar jogar apenas a “estabilização automática”. Nenhuma política conjuntural comum é executada ao nível da zona euro, nenhum objectivo comum em termos de crescimento ou de emprego é definido. As diferenças de situação entre os países não são tomadas em conta, visto que o pacto não se interessa nem pelas taxas de inflação nem pelos deficits externos nacionais. Os objectivos das finanças públicas não têm em conta as situações económicas nacionais.

As instâncias europeias procuraram impulsionar, com êxito desigual, algumas reformas estruturais (por exemplo, as Grandes orientações de políticas económicas, o Método aberto de coordenação, ou a Agenda de Lisboa). O seu modo de elaboração não foi nem democrático nem mobilizador, a sua orientação neo-liberal não correspondia obrigatoriamente às políticas decididas ao nível nacional, tendo em conta a relação de forças existente em cada país. Tal orientação não conheceu os êxitos retumbantes que pudessem legitimá-la. O movimento de liberalização económica foi posto em causa (fracasso da directiva Bolkenstein); alguns países tentaram nacionalizar as suas políticas industriais enquanto que a maior parte se opôs à europeização das suas políticas fiscais ou sociais. A Europa social continua a ser uma palavra vã, só a Europa da concorrência e a da finança se afirmou realmente.

Para que a Europa possa promover realmente um modelo social europeu, pomos em debate duas medidas:

Medida nº 16: Pôr em causa a livre circulação dos capitais e da mercadorias entre a União Europeia e o resto do mundo, negociando os acordos bilaterais ou multilaterais que se mostrem necessários.

Medida nº17: Em vez da política de concorrência, fazer da “harmonização no progresso” o fio director da construção europeia. Definir objectivos constrangentes comuns em matéria de progresso social e em matéria macroeconómica (GOPS – Grandes orientações de política social).


FALSA EVIDÊNCIA Nº 9: O EURO É UM ESCUDO CONTRA A CRISE

O euro poderia ter sido um factor de protecção contra a crise financeira mundial. A supressão de toda a incerteza sobre as taxas de câmbio entre as moedas europeias eliminou um grande factor de instabilidade. No entanto, nada disso aconteceu: a Europa foi mais duramente afectada pela crise do que o resto do mundo. Isso tem que ver com as próprias modalidades da construção da união monetária.

Desde 1999, a zona euro conheceu um crescimento relativamente medíocre e um acréscimo das divergências entre os Estados membros, em termos de crescimento, de inflação, de desemprego e de desequilíbrio das contas externas. O quadro da política económica da zona euro que tende a impor políticas macroeconómicas semelhantes para países em situações muito diferentes, alargou as disparidades de crescimento entre os Estados membros. Na maior parte dos países, em especial os maiores, a introdução do euro não provocou a prometida aceleração do crescimento. Para os outros houve crescimento mas ao preço de desequilíbrios dificilmente sustentáveis. A rigidez monetária e orçamental, reforçada pelo euro, permitiu que todo o peso do ajustamento fosse suportado pelo trabalho. Foi promovida a flexibilidade e a austeridade salarial, reduzindo a parte do trabalho no rendimento total, aumentando as desigualdades.

Esta corrida para o fundo, no social, foi ganha pela Alemanha, que soube libertar enormes excedentes comerciais em detrimento dos seus concorrentes e, sobretudo, dos seus próprios assalariados, impondo uma baixa maior dos custos do trabalho e das prestações sociais, por comparação com os seus vizinhos, que não conseguiram tratar os seus trabalhadores com tanta dureza. Os excedentes comerciais alemães pesam sobre o crescimento dos outros países europeus. Os deficits orçamentais e comerciais de uns são a contrapartida dos excedentes dos outros. Porque os diferentes Estados não foram capazes de definir uma estratégia coordenada.

A zona euro deveria ter sido menos atingida pela crise financeira do que os Estados Unidos ou o Reino Unido. As famílias estão menos envolvidas nos mercados financeiros que são menos sofisticados. As finanças públicas estavam em melhor situação: o deficit público do conjunto dos países da zona euro era de 0.6 % do PIB em 2007, contra perto de 3% nos Estados Unidos, Reino Unido e Japão. Mas a zona euro padecia de um cruzamento de desequilíbrios: os países do Norte (Alemanha, Áustria, Holanda, Países Escandinavos) refreavam os seus salários e a sua procura interna, acumulando excedentes no comércio externo, enquanto os países do Sul (Espanha, Grécia, Portugal) tinham um crescimento com algum vigor, com taxas de juro baixas mas acumulavam deficits exteriores.

Quando a crise estalou nos Estados Unidos, estes tentaram implementar uma real politica de relançamento orçamental e monetário, iniciando um movimento de retorno à regulação financeira. A Europa, pelo contrário, não soube comprometer-se com uma política suficientemente reactiva. De 2007 a 2010, o impulso orçamental não foi além de 1,6 % do PIB na zona euro, contra 3,2 % no Reino Unido e 4,2 % no Estados Unidos. A quebra da produção devida à crise foi nítidamente mais forte na zona euro do que nos Estados Unidos. O crescimento dos deficits orçamentais na zona euro foi mais sofrido que o resultado de uma política activa.

Ao mesmo tempo, a Comissão continuou a desencadear processos de deficit excessivo contra os Estados membros, de tal sorte que, em 2010, praticamente a totalidade dos países europeus enfrentava um processo. A Comissão solicitou aos Estados membros que se comprometessem a regressar, antes de 2013 ou 2015, à barra de 3% independentemente da evolução económica de cada um. As instâncias europeias continuam a reclamar políticas salariais restritivas e a pôr em causa os sistemas públicos de reforma e de saúde, com o risco evidente de fazer mergulhar o Continente numa depressão e aumentar as tensões entre os países. Esta ausência de coordenação e, mais fundamentalmente, a ausência de um verdadeiro orçamento europeu capaz de permitir autêntica solidariedade entre os Estados membros incitou os operadores financeiros a afastarem-se do euro e a especular abertamente contra ele.

Para que o euro possa realmente proteger os cidadãos europeus da crise, avançamos para debate duas medidas:

Medida nº 18: Garantir uma verdadeira coordenação das políticas macroeconómicas e uma redução concertada dos desequilíbrios comerciais entre os países europeus.

Medida nº 19: Compensar os desequilíbrios de pagamentos na Europa com um Banco de Pagamentos (organizadora dos empréstimos entre países europeus).

Medida nº 20: Se a crise conduzir ao desaparecimento do euro e, enquanto esperamos a instalação de um regime de orçamento europeu (cf. infra), estabelecer um regime monetário intra-europeu (moeda comum do tipo “bancor”) que organize a reabsorção dos desequilíbrios das balanças comerciais no seio da Europa.


FALSA EVIDÊNCIA Nº 10: A CRISE GREGA PERMITIU QUE FINALMENTE SE AVANÇASSE PARA UM GOVERNO ECONÓMICO E UMA VERDADEIRA SOLIDARIEDADE EUROPEIA

A partir de meados de 2009, os mercados financeiros começaram a especular sobre as dívidas dos países europeus. Globalmente, o forte aumento das dívidas e dos deficits públicos à escala mundial (ainda) não acarretou a alta das taxas de juro de longo prazo: os operadores financeiros pensam que os bancos centrais manterão bastante tempo as taxas de juro reais a um nível próximo de zero e que não há risco de inflação ou de incumprimento (“défaut”) por parte de um grande país. Mas os especuladores perceberam as falhas da organização da zona euro. Enquanto os governos dos outros países desenvolvidos podem sempre ser financiados pelos seus respectivos bancos centrais, os países da zona euro renunciaram a essa possibilidade, e dependem totalmente dos mercados financeiros para o financiamento dos seus deficits. Em consequência, a especulação pôde desencadear-se sobre os países mais frágeis da zona euro: a Grécia, a Espanha, a Irlanda.

As instâncias europeias e os governos tardaram em reagir, não querendo dar a impressão de que os países membros tinham direito a um apoio sem limite por parte dos seus parceiros e querendo sancionar a Grécia, culpada de haver mascarado – com a ajuda da Goldman Sachs – a dimensão dos seus deficits. Todavia, em Maio de 2010, o BCE e os países membros tiveram que criar, com urgência, um Fundo de estabilização para indicar aos mercados que aportariam um apoio sem limite aos países ameaçados. Em contrapartida, estes países foram obrigados a anunciar programas de austeridade orçamental sem precedentes, que irão condená-los a um longo período de recessão. Sob pressão do F.M.I. e da Comissão Europeia, a Grécia teve que privatizar os seus serviços públicos e a Espanha que flexibilizar o seu mercado de trabalho. Mesmo a França e a Alemanha, que não estão sob a ameaça da especulação, anunciaram medidas restritivas.

No entanto, globalmente, a procura não é de modo algum excessiva na Europa. A situação das finanças públicas é melhor do que a dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha, permitindo uma ampla margem de manobra orçamental. É preciso reabsorver os desequilíbrios de um modo coordenado: os países excedentários do Norte e do Centro da Europa devem levar a cabo políticas expansionistas – alta dos salários e das despesas sociais – para compensar as políticas restritivas dos países do Sul. Globalmente, a política orçamental não deve ser restritiva na zona euro, enquanto a economia europeia não se aproxime do pleno emprego a uma velocidade satisfatória.

Mas os partidários das políticas orçamentais automáticas e restritivas na Europa estão hoje, infelizmente, numa posição reforçada. A crise grega permite fazer esquecer as origens da crise financeira. Aqueles que aceitaram apoiar financeiramente os países do Sul querem impor, em contrapartida, um endurecimento do Pacto de estabilidade. A Comissão e a Alemanha querem impor a todos os países membros a inscrição do objectivo do equilíbrio orçamental nas suas constituições e exercer uma vigilância da política orçamental por comités de peritos independentes. A Comissão quer impor a todos os países uma longa cura de austeridade para regressarem a uma dívida pública inferior a 60 % do PIB. Se há um avanço no sentido de um governo económico europeu é um avanço para um governo que, em vez de desapertar o garrote da finança, quer impor a austeridade e aprofundar as “reformas” estruturais em detrimento das solidariedades sociais em cada país e entre todos.

A crise oferece às elites financeiras e às tecnocracias europeias a tentação de por em prática a “estratégia de choque”, aproveitando a crise para radicalizar a agenda neo-liberal. Mas esta política tem muito poucas possibilidades de êxito:

- A diminuição das despesas públicas vai comprometer o esforço necessário, à escala europeia, para sustentar as despesas de futuro (investigação, educação, política familiar), para ajudar a indústria europeia a manter-se e a investir nos sectores de futuro (economia verde).

- A crise vai permitir a imposição de fortes reduções das despesas sociais, objectivo incansavelmente prosseguido pelos defensores do neo-liberalismo, com o risco de comprometer a coesão social, reduzir a procura efectiva, levar as famílias a poupar mais - para a sua reforma e a sua saúde - junto de instituições financeiras responsáveis pela crise.

- Os governos e as instâncias europeias recusam-se a realizar a harmonização fiscal que permitiria a necessária elevação dos impostos sobre o sector financeiro, sobre os patrimónios importantes e os rendimentos elevados.

- Os países europeus estão em vias de instaurar duradoiramente políticas orçamentais restritivas que irão pesar enormemente sobre o crescimento. As receitas fiscais vão cair. Assim, os deficits públicos não irão melhorar, os rácios da dívida degradar-se-ão, os mercados não vão acalmar.

- Os países europeus, dada a diversidade das suas culturas políticas e sociais, não têm que vergar-se, na sua totalidade, à disciplina férrea imposta pelo Tratado de Maastricht; também não se vergarão todos ao reforço que pretende organizar-se actualmente. O perigo de desencadear uma dinâmica de recolhimento identitário generalizado é real.

Para avançar no sentido de um governo económico e uma solidariedade europeia avançamos para debate duas medidas:

Medida nº 21: Desenvolver uma fiscalidade europeia (taxa de carbono, imposto sobro os lucros e as mais valias…) e um verdadeiro orçamento europeu para facilitar a convergência das economias e tender para uma equalização das condições de acesso aos serviços públicos e sociais nos diferentes Estados membros, com base nas melhores práticas.

Medida nº 22: Lançar um vasto plano europeu, financiado por subscrição junto do público, a uma taxa de juro baixa mas garantida e/ou por criação monetária do BCE, para fazer face à reconversão ecológica da economia europeia.


Conclusão

QUESTIONAR A POLÍTICA ECONÓMICA
TRAÇAR CAMINHOS PARA REFUNDAR A UNIÃO EUROPEIA


A Europa tem vindo a construir-se, desde há três decénios, sobre uma base tecnocrática, excluindo as populações do debate da política económica. A doutrina neo-liberal que repousa sobre a hipótese hoje indefensável da eficiência dos mercados financeiros tem que ser abandonada. É preciso reabrir o espaço das políticas possíveis e colocar em debate propostas alternativas coerentes que travem o poder da finança e organizem a harmonização, no progresso, dos sistemas económicos e sociais europeus. Isto supõe a mutualização de importantes recursos orçamentais, possibilitada pelo desenvolvimento de uma fiscalidade europeia fortemente redistributiva. É preciso libertar os Estados do garrote dos mercados financeiros. Só assim, o projecto da construção europeia poderá reencontrar a legitimidade popular e democrática que hoje lhe falta.

Evidentemente que não é realista imaginar que 27 países decidirão, ao mesmo tempo, uma ruptura deste tipo no método e nos objectivos da construção europeia. A Comunidade Económica Europeia começou com seis países: a refundação da União Europeia passará também, no princípio, por um começo de acordo entre alguns países desejosos de explorar caminhos alternativos. À medida em que se forem tornando evidentes as consequências desastrosas das políticas hoje adoptadas, o debate sobre as alternativas começará a crescer em toda a Europa. Lutas sociais e mudanças políticas advirão em ritmo diferente, segundo os países. Governos nacionais tomarão soluções inovadoras. Quem realmente o desejar, poderá participar em formas de cooperação inovadoras para tomar as medidas necessárias em matéria de regulação financeira, de política fiscal ou social. Através de propostas concretas, estenderão a mão a outros povos para que se juntem ao movimento.

Foi por isso que nos pareceu importante esboçar e colocar ao debate, desde já, as grandes linhas da política económica alternativa que tornarão possível esta refundação da construção europeia.


1 de Setembro de 2010




(*) Este ‘Manifesto’ é uma iniciativa de um grupo de economistas franceses neo-keynesianos, de que se destacam André Orléan, presidente da Association Française d’Économie Politique (AFEP), Philippe Askenazy, Thomas Coutrot e Henri Sterdyniak

Comentários

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