As minhas memórias do 25 de Abril


Aviso prévio - esta não é uma entrada politicamente correcta.
Não vou enaltecer o que aconteceu no dia 25 de Abril de 1974 e nos tempos conturbados que se seguiram.
Outros haverá muito mais capacitados que eu para o fazerem.
Vou apenas partilhar as minhas memórias.
E a memória de um garoto de nove anos é muito viva.
Feita ainda de imagens e cor.
À época, era aluno de uma escola primária que ficava situada perto da casa onde morava.
Era meu professor o saudoso Bentes, o célebre "rato atómico" da Académica.
Em boa verdade, os ecos da Revolução não se fizeram sentir grandemente lá na escola.
Como não se fariam sentir a partir do momento que completei os dez anos e passei a estudar em regime de semi-internato num colégio dirigido por Jesuítas também perto de casa. 
Situado numa antiga quinta senhorial, doada por um Visconde à Companhia de Jesus, o colégio fechou-se à agitação revolucionária que se vivia cá fora.
Dos 126 alunos (se não me falha a memória era este o número exacto), 120 eram internos e 6 semi-internos.
Passávamos o dia enclausurados entre os muros da quinta e o movimento cá fora passava-nos algo ao lado.
Como tal, a primeira imagem vívida que tenho do 25 de Abril, é uma imagem muito má.
O meu pai desempenhava o cargo, relevantíssimo!!, de presidente da Casa do Povo da freguesia onde vivíamos.
Nos dias que se seguiram à Revolução, estávamos calmamente a jantar em casa.
Era nosso convidado o igualmente saudoso padre Filipe Faria.
A dado momento, bateram à porta.
Fui eu abrir.
E deparei-me com uma série de militares, armados, acompanhados por alguns dirigentes políticos de partidos de extrema esquerda (só mais tarde tive consciência desse facto, porque, naquele momento, eram apenas pessoas que tinha conhecido toda a vida, meus vizinhos).
Queriam saber onde estava o meu pai.
Meu pai que, ao ouvir a algazarra, logo apareceu.
Teria que os acompanhar.
E lá foi o meu pai, rodeado por toda aquela gente, sem que nos dessem quaisquer explicações para onde o levavam.
Ou porquê.
Meteram-no num jipe e partiram a alta velocidade.
O padre Faria, vendo a minha mãe em pânico, desceu as escadas para ir perguntar exactamente o que é que se passava.
Ao chegar ao fundo das escadas, foi logo ali barbaramente agredido por essas pessoas que comigo tinham convivido toda a vida.
O desespero da minha mãe fê-la entrar em choque.
E perder uma criança que podia hoje ser meu irmão ou irmã.
Algumas horas mais tarde, o meu pai apareceu.
Toda aquela selvajaria tinha apenas uma justificação - o meu pai tinha que devolver a chave da Casa do Povo.
Algo que, ironicamente, ele até nunca tinha querido.
Seria mais bonito escrever hoje acerca do fim da ditadura, de uma nova era de liberdade que se iniciou no dia 25 de Abril de 1974.
Da qual, em boa verdade, só tive verdadeira consciência dois anos depois.
Quando os portões do colégio foram "abertos" e o regime de internato foi abolido.
Mas não gosto de branquear ou reescrever a História.
E passar uma esponja nos excessos que foram cometidos.
Hoje é um dia de festejos, sem dúvida.
Mas é também um dia em que é necessário relembrar estes acontecimentos que marcaram, para muita gente, o 25 de Abril de 1974 e os tempos que se seguiram.
Não foram só cravos.
Também houve muitos espinhos.
Que ficaram vividamente cravados na memória de alguns.
Neste caso, na memória de um garoto quase a completar dez anos.

Comentários

  1. Não é a melhor memória, amigo.
    Bjs

    ResponderEliminar
  2. Não é.
    Mas é real.
    E não pode ser apagada.
    Bjs

    ResponderEliminar
  3. Tristes recordações, Pedro.

    Cravos (viçosos ou murchos?) espinhos, bla bla bla.

    Promessas que não foram cumpridas e ideias que se foram perdendo.

    P.S. - E isso tudo, Pedro, por causa de uma chave!?!??

    ResponderEliminar
  4. É a triste realidade, Observador.
    E não se pode esquecer.
    Um abraço

    ResponderEliminar
  5. A minha experiência com o 25 de abril, igualmente não foi das melhores.
    Após 10 anos em Macau, fui a Portugal com a família, no gozo de licença graciosa, tinha na altura 30 anos de idade.
    Tinha chegado a Lisboa dia 5 de Abril, e foi um orgulho para mim dar a conhecer à minha família, a nova família que tinha construído em Macau.
    Fiquei por Lisboa para nos adaptarmos aos clima, e encontravamos na Amadoras quando se deu o 25 abril. Não podemos sair de Lisboa, e por lá ficámos até aos finais do mês de Abril.
    Meu irmão nos veio buscar em sua viatura, e para nossa surpresa, antes de entramos em Évora, fomos mandados parar, por um amigo de infância, de barcedeira vermelha e armado com uma G3, nos pediu os documentos e passou revista à viatura, não nos conhecia de parte alguma, segundo disse, estava ali ao serviço do povo, PCP.
    Esse mesmo fulano, que muitas vezes a minha estimada mãe lhe matou a fome,assim agiu, e mais, ocupou a casa de uma antiga professora minha e os terrenos que lhe pertenciam, nos dias de hoje ainda habita essa casa, os terrenos os vendeu, ganhando ainda algo dinheiro.
    Eu tenho a honra de ter pertencido aos quadros da Mocidade Portuguesa, lá muito aprendi, e nunca me foi pregada mensagem alguma sobre o salazarismo.
    Nos dias de hoje, com a liberdade alcançada no 25 de abri, essas organizações nacionais, acabaram, a juventude mudou de hábitos, e dá pena verem-se debandulando pelas ruas esses jovens drogados, a insegurança é constante, as viagarices aumentaram, muitos politicos que nunca fizeram nada na puta da vida, estão pobres de ricos, para esses sim a revolução dos cravos atingiu os seus objectivos.
    Não vele a pena bater mais no assunto, pois todos nós sabemos o estado em que o país se encontra.
    Sou abertamente anti comunista e anti socialista.
    Que venha uma nova revoluação e ponha todos esses tipos que ao longo dos 37 anos de liberdade nos privaram da mesma, sacando-nos com tudo.

    ResponderEliminar
  6. Caro Pedro Coimbra
    Acabo de escrever um post dos mais tristes que até hoje fiz.
    Não podia no entanto deixar de comentar o seu.
    Não tenho duvidas que muita gente séria e honesta sofreu os efeitos colaterais duma Revolução que apesar de tudo foi das pais pacíficas do mundo.
    Depois de 48 anos de fascismo as "massas" eram politicamente ignorantes e na altura criou-se a ideia de que quem tivesse qualquer ligação ao Estado, tinha forçosamente que ser Fascista. Houve muita gente que sofreu no corpo e na alma essa agressão. A estória do seu Pai é igual a tantas outras. As revoluções nunca são perfeitas e fazem sempre vitimas inocentes.
    Lamento essa mágua que certamente nunca irá passar.
    Abraço

    ResponderEliminar
  7. Pedro Coimbra,
    É verdade que houve situações trágicas e um verão quente para esquecer, mas a liberdade foi a melhor coisa que poderiamos alcançar.

    Hoje, o que me assusta é o cinzentismo em que estamos a cair, a falta de responsabilização cívica e moral e até a impunidade do poder, o que é assustador.
    Compreendo que não tenha boas memórias mas numa revolução há sempre coisas difíceis de explicar.

    Viveu em Coimbra?
    Abraço!
    Ana

    ResponderEliminar
  8. Amigo Pedro,
    Fortes lembranças...qualquer palavra que eu coloque será irrelevante, feito que escrever historia é uma coisa e vive-la é totalmente diferente...sinto por suas dores. Que talharam o homem digno que és hoje.
    Só me faz crescer a admiração que sinto por vós.
    Se hoje é um dia festejos para uns, creio eu que deva ser para ti um dia de orgulho ...por sua familia.
    Abraço fraterno!
    Eunice Espinola

    ResponderEliminar
  9. Amigo Cambeta,
    As pessoas a que me refiro no post são pessoas com quem lidámos toda a vida.
    E com as quais, mais tarde, retomámos a relação.
    Alimentar ódios para quê?

    Rodrigo,
    Foi exactamente isso que se passou com o meu pai.
    Que, para cúmulo, nasceu na casa ao lado da casa do Salazar e levou alguns tabefes dele.
    Não guardo ódios.
    Mas não posso esquecer estas situações.
    Vou ler o seu post agora.

    ana,
    Obviamente não retiro um pingo de valor ao que foi conseguido com o 25 de Abril, às oportunidades que foram dadas a pessoas que nunca as teriam de outro modo, ao fim de guerras que nunca teriam soluções militares.
    Mas não se pode varrer para o canto os momentos maus.
    De ontem e de hoje.
    É com eles que mais aprendemos.
    Nasci, cresci e vivi grande parte da minha vida em Coimbra.
    A cidade que transporto no nome e no coração.

    Eunice,
    É nestes momentos complicados que crescemos.
    Dói no momento, fica a ferida, mas ficam sempre aspectos positivos.
    E é nesses que nos devemos focar.

    ResponderEliminar
  10. Que estas memórias nunca se apaguem.
    Eis, uma história da vida real que eu gostei de conhecer. No fundo, todos temos as nossas histórias, umas vividas outras contadas por alguém que nos "fez o favor" de dar algumas lições de vida à conta desse período. O meu avô foi um deles.

    ResponderEliminar
  11. Pedro
    Lamento imenso acredite, nada que lhe possa dizer lhe vai arrancar essa triste e dolorosa recordação. Sei que existiram casos muito idênticos ao do seu pai. Eu já tinha 16 anos e já casada com uma filhota de 5 meses, com o marido na tropa quase a partir para Angola para a guerra, que felizmente não foi, porque uma manobra foi feita para que ele não partisse. Foi um verão quente com acontecimentos jamais esquecidos, no entanto a liberdade foi uma das melhores coisas que podemos obter graças a grandes homens, que infelizmente ainda hoje faleceu um deles.
    Abraço sentido

    ResponderEliminar
  12. Pedro Coimbra,
    Vivo em Coimbra, se quiser alguma coisa é só dizer!
    :)

    ResponderEliminar
  13. Aqui também se celebra o 25 de Abril. Com fado, com canções, com discursos. Discursos longos, enfadonhos, palavras ocas, vozes que gostam de fazer eco, de se ouvir e que acabam com o Viva Portugal. Fui convidada para assistir a uma destas celebrações. Não fui no ano passado, não fui no outro e não vou hoje (ainda são 18h50 de segunda-feira). Não porque não valorize o que aconteceu naquele dia ; admiro quem esteve por detrás de tamanha façanha, uma revolução que fantasiei, que deu esperança a tanta gente mas que acabou por ficar incompleta no seu objetivo. A liberdade é um bem, é um direito que todos temos. Alguns abusaram dessa liberdade, em nome da liberdade tomaram as mais estranhas decisões com nefastos resultados para o país e para a sua população. E passados tantos anos, com tantas oportunidades para fazer de Portugal um país que poderia velar pelos seus cidadãos, proporcionando-lhes um estilo de vida confortável e digno... está à vista o resultado de tão má governação ano após ano após ano...

    ResponderEliminar
  14. Umas memórias infelizmente muito tristes.
    Gosto da ideia de uma revolução com cravos em vez de tiros, que veio para trazer liberdade, mas é muito mau que depois tenham existido excessos, saneamentos e instabilidade.

    ResponderEliminar
  15. Prezado confrade Pedro Coimbra!
    Sinto-me um abelhudo por atrever-me a escrever estas parcas linhas, todavia fiquei enternecido ao ter a prerrogativa de conhecer as reminiscências de um infante aturdido com o que acontecia a sua volta... Em 1974 tinha 21 anos e aqui vivíamos ainda sob a égide da ditadura, que só terminou em 1985... Além de viver nos anos de chumbo também ficava aterrado com a guerra fria...
    Caloroso abraço! Saudações solidárias!
    Até breve...
    João Paulo de Oliveira
    Diadema-SP
    Brasil

    ResponderEliminar
  16. relogio.de.corda
    Este é um episódio muito pessoal.
    Outros, semelhantes, foram-me dados a conhecer por amigos.
    Excessos que não deviam ter acontecido.

    Adélia,
    Aconteceu e partilhei convosco ontem.
    Mas não guardo rancor.
    Não vale a pena.
    Passou muito tempo.
    A memória não se apaga.
    O ressentimento vai dando lugar à compreensão.

    ana,
    Quantas vezes não nos teremos já cruzado aí por Coimbra.....
    Uma cidade que amo.
    Macau mudou a minha vida e para sempre ficarei ligado a esta cidade.
    Mas Coimbra é um amor eterno.
    Onde ainda reside grande parte da família e os amigos de toda a vida.
    Bjs para si e a nossa cidade

    Catarina,
    Tenho que começar aqui uma rubrica, que já existe noutros blogues, que é o comentário da semana.
    O seu seria, desde já, um sério candidato a ganhar essa distinção.

    Gábi,
    Todos gostamos da ideia de uma revolução de cravos.
    Pacífica.
    Mas houve realmente momentos muito conturbados e dolorosos.
    Que não se podem esconder.

    Prof. João Paulo Oliveira,
    Os seus comentários são sempre de excelência e sempre muito bem vindos.
    Felizmente, os nossos países vivem hoje em liberdade e democracia.
    Mas ainda são cometidos excessos.
    Agora de outro tipo.
    Mas não menos dolorosos.

    ResponderEliminar
  17. O comentário do "folha seca" podia ser o meu.
    Só quero acrescentar, que para mim o 25 de Abril significa LIBERDADE.
    Como também estou convencida, que a situação da mulher em Portugal melhorou um pouco desde esse dia.

    ResponderEliminar
  18. ematejoca,
    Repare que, em lado nenhum, eu condeno o 25 de Abril e o que a data representa.
    O que eu condeno, com base numa experiência pessoal, são os excessos cometidos.
    Que não se podem varrer para debaixo do tapete.
    Não tenho dúvidas que a situação da mulher melhorou desde então.
    Muito, diria eu.
    Que até tenho duas filhas que vão beneficiar dessa melhoria.

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares